A Urutu surgiu em terras mineiras produzindo música instrumental de altíssimo nível influenciado pelo jazz e pela literatura. E essa entrevista conta um pouco da história da banda, suas influências, projetos para o futuro etc.
2112. Podemos começar falando sobre o início da formação da banda. Vocês já se conheciam?
Urutu. Carlos e Tarcísio já se conheciam e tocavam pelos lugares na cena da música instrumental de Uberaba-MG. Carlos dava aulas no conservatório há vários anos e promovia eventos aqui como o TEU Jazz, integrava com outros vários artistas a Segunda Jazz na Choperia Archimedes, em que Tarcísio também tocava e onde encontraram Ricardo, quando chegou na cidade, vindo de São Paulo, e nos demos bem tanto pessoalmente quanto no som. Isso foi em 2016. Para você ver a importância de ambientes que integrem músicos/artistas em geral. Essa segunda era semanal, e durou por mais de 20 anos. Nós passamos, dali, a tocar juntos praticamente toda semana, conciliando uma rotina voltada para essa música, com as agendas de professores, que os três são no grupo. Carlos e Tarcísio já tinham vontade de fazer música, e Ricardo deu uma liga muito especial no som do trio, sem contar a amizade que seguiu adiante.
2112. O som de vocês é puxado para o jazz mas traz influências da música mineira e da literatura brasileira. O que vocês ouvem e lêem e que são referências diretas no som da banda?
Urutu. As artes estão sempre vivas. Nem sempre acabam sendo referências diretas. No processo criativo e nas nossas conversas, vamos descobrindo quais dessas influências estão aparecendo mais naquele momento. Tem uma abertura nisso. A influência do Jazz e da música brasileira, em especial a mineira, gera essa fusão na banda. Mas o fato de cada um ter influências particulares promove o som próprio da banda. Por exemplo, Ricardo foi muito influenciado pelo rock e o pop, inclusive o metal, quando adolescente. Também estudou música de câmara/orquestra por um tempo, só aos 17 anos é que conheceu a música instrumental, pela televisão! Carlos também tem influências de rock, inclinado ao progressivo, e é raro não ter influências também do metal, como guitarrista. Além da vivência no violão da música de câmara, e outras tantas. O Free Jazz Festival abriu ouvidos dos dois, à época. O choro, a música regional nas suas várias expressões, e a vastidão da música instrumental brasileira acaba sendo uma influência para os três; assim como a influência de nomes do jazz, principalmente dos anos 60 em diante, com combos menores. Na banda, essas influências se condensam em uma outra sonoridade. Apesar de termos influências de personagens específicos, o resultado do som do Urutu parece não delinear muito exatamente essas fronteiras. É o que acontece um pouco com a influência literária, que chega no trio por meio de conversas nossas, mas influência mais nos cenários musicais que criamos do que em letras, até porque a música é instrumental geralmente. É uma diversidade de influências dentro das artes, inspirando um som que a banda ainda está em busca, está por descobrir.
2112. Essas referências acabam dando a vocês um leque de opções para a criação de uma música livre de qualquer tipo de rótulos, não é?
Urutu. Sim, ao mesmo tempo que encontramos e deixamos surgir a estética da banda, com uma intenção de que as pessoas liguem o nome ao nosso som, nosso jeito de tocar, não há um rótulo que nós temos que servir. É bem recorrente nos colocarem debaixo do guarda-chuva do jazz, e com certeza essa é uma influência desde a origem. Os improvisos ajudam nisso, e não dispensamos essas tradições musicais, porque estão entre nossas grandes influências. Mas, como criação, não pensamos em um rótulo para compor. É engraçado, mas a música ser instrumental também ajuda nossa música a não ter um rótulo, ser ampla, com muita liberdade rítmica para transitar por estilos. O que não nos afasta do groove/swing, da levada envolvente, que faz sentir bem a música. Em breve vem novidade, com Ricardo cantando! Isso já tem aparecido nos últimos shows. Quem ouvir o som, vai sentir que muitos estilos o alimentam.
2112. Não é segredo que muitas de nossas tradições aos poucos estão se perdendo com o tempo. Entre as referências utilizadas por vocês existe alguma ou algumas que se encaixam dentro desse contexto?
Urutu. A banda procura valorizar a diversidade rítmica que vem do regionalismo brasileiro, por crermos que isso é uma forma de conservação da cultura brasileira. Isso não tira o espaço para o novo, para a experimentação de timbres e estilos. O Sudeste é interessante nesse aspecto, e seu fluxo constante de gente. Une muitos regionalismos, e ao mesmo tempo os mistura. Você encontra quem esteja preservando uma tradição, e quem esteja misturando tradições também. E isso convive o tempo todo. Desde o tambor do congado e dos moçambiques, até a música instrumental de trio - de várias sonoridades, de Baden Powell, Raphael Rabello a Joe Pass (pensando em cordas e percussão), estamos vivendo um tempo em que a arte em si, e o fazer música ao vivo aberta ao momento, já é uma tradição que precisamos cuidar também.
2112. Como funciona o processo de criação de vocês?
Urutu. Ele varia. Desde o início nós temos aquilo de alguém levar uma ideia de uma música começando, e então como banda nós deixamos surgir um arranjo em torno. Se rolar mais uma seção em cima acaba aparecendo também ali, coletivamente. Outras idéias surgem entre os ensaios, e vamos nos falando também, assim as ideias musicais vão tomando sua forma. Acontece de composições praticamente prontas chegarem no ensaio, mas a maioria das composições segue aquele caminho, sempre abertos a deixar fluir melhor essa criação.
2112. Muito do material criado por vocês devem surgir em meio aos improvisos nos shows ou nos próprios ensaios, não?
Urutu. A criação também vem do “muito tocar”, ou seja, por vezes um tema que tocamos há muito tempo passa por um processo de rearranjo, que se desenvolve. Tocar ao vivo uma idéia nova, para ver como sentimos e como as pessoas recebem esse som, também ajuda a decidir se a música é aquilo mesmo.
2112. Em 2017 é lançado Urutu. Vocês mesmo bancaram os custos da gravação ou foi no sistema cooperativo entre fãs e amigos?
Urutu. Os custos foram por conta do trio. Sabemos como é complicado no Brasil levantar patrocínio para ideias artísticas novas, ou que não estejam aí para servir a um mainstream, ainda que dentro de seu próprio segmento. E já vai um agradecimento ao Ricardo Barbosa (106Studio), que deu um grande apoio para gravarmos. Ajuda muito a fazer a cena, estimula quem está no início da trajetória, e já gravou inúmeras bandas autorais da região!
2112. Muitos artistas já me confessaram que não se deram por satisfeitos com o trabalho depois de pronto. Urutu ficou de acordo com o projeto que vocês idealizaram?
Urutu. Sim, nós gostamos do resultado. Nós vínhamos tocando juntos, apresentando em alguns lugares, e esse repertório já estava em um ponto legal de gravar como fizemos: ao vivo, com o mínimo de takes e edição e todos gravando juntos. Bem orgânico como álbum, era uma intenção nossa.
2112. O que vocês fizeram nesse álbum e que não repetiriam nos próximos trabalhos?
Urutu. Como foi nosso primeiro álbum lançado, e quisemos ele ao vivo, o resultado artístico nos deixou um bom retrato daquele momento da banda. O que podemos mudar para os próximos é o tempo de gravação - gravamos o álbum em um dia. E mudaríamos a maneira de distribuir essa música para o público. E essa é uma parte referente ao planejamento, à pré-produção, à pós-produção, e à comunicação principalmente, para que o lançamento consiga ser mais difuso. Para o próximo álbum, já temos e buscaremos mais apoio de produção e financeiro, até para que a banda cultive seu meio, e mais pessoas possam ouvir nossa música.
2112. O álbum teve uma boa aceitação nas rádios locais?
Urutu. A rádio que melhor repercutiu foi a Rádio Som das Gerais. Grande abraço ao Ricardo, responsável por ela. Num geral, houve uma repercussão pequena do álbum. É uma das questões que vamos melhorar para os próximos lançamentos, esse contato mais amplo com a distribuição.
2112. Apesar da música instrumental ter muitos aficionados ela ainda vive num território muito restrito no país. O que ainda falta conquistar na opinião de vocês?
Urutu. A música instrumental segue um “destino” semelhante à música chamada erudita, que são poucas as pessoas que apreciam, o espaço para sua divulgação é restrito e difusão em redes sociais é estreito. Mas essa é uma prática da mídia hegemônica, que restringe o acesso a uma cultura ampla para poucas pessoas, e alimenta esquemas corruptos de massificação há muito tempo. Ao passo em que não temos nem mesmo um Ministério da Cultura, que possa mediar em última instância, problemas como acesso a contratos melhores, manutenção de editais de fomento independente de qual gestão municipal esteja em vigor (bem como sua nuance político/ideológica): teria que funcionar o tempo inteiro. Até para ser uma profissão de fato, com credibilidade e bem remunerada, a profissão de artista. Esse fundo econômico e político é fundamental, para ampliar o alcance de toda forma de arte pelo país. Com educação, resistência, e formação de público, podemos ampliar essa cultura.
2112. Acredito que seja necessário mais apoio das rádios, a realização de festivais/locais que apoiem músicas mais elaboradas, a criação de selos e claro mais projetos culturais na área de músicas instrumentais, não é?
Urutu. Com certeza. Aqui aproveitamos agradecer o convite e parabenizar sua iniciativa, Carlos, com o Blog 2112. Sites falando do que está acontecendo na cultura dos artistas “reais, de carne e osso”, e outras formas de difundir a música independente tem que ser valorizadas. Diversificar o espaço nas rádios, nos eventos mais estruturados e nas tvs ajudaria muito a música instrumental. Quanto mais patrocínios, editais, festivais, iniciativas de fomento à cultura, melhor. E é importante que essas oportunidades sejam cada vez mais estáveis economicamente, de modo a oferecer para artistas de menor alcance de público (que são a maioria) estímulos e opções de financiamento de suas carreiras, suas trajetórias.
2112. Infelizmente o jazz no Brasil é visto como música elitista o que dificulta a sua penetração no gosto popular. O que vocês fazem para cortar esse caminho e "chegar onde o povo está?"
Urutu. É interessante, porque historicamente essa é uma música popular, que acontece no meio do povo. Assim vemos nossa música, por isso continuamos a tocar em lugares pequenos - e claro, são os lugares que na maioria das vezes dão espaço e apoiam. Por um lado, há toda uma massificação de dois ou três estilos musicais, e por outro, estilos e formas de arte com raiz popular passam a ser tachados como elitistas, pois seu acesso vai ficando restrito, até encontrar um ostracismo. Aconteceu com a bossa nova (elistista?), sendo esta origem do samba (popular), por exemplo. Quando na prática, a maioria dos artistas continua parte da classe popular, é pobre. Isso por si só poderia caracterizar o próprio jazz como popular. Talvez o jazz elitista seja este de grandes festivais, que rodam entre si também só alguns artistas. Que continuam sendo eventos de classe média. Grande parte da fração que tem mais grana da sociedade, está apoiando gravadoras que massificam uma música pouco artística, muito feita em cópia, em série, construindo uma percepção pouco criativa no público, e visando lucro de pouca gente. Por isso, talvez seja uma ilusão de ótica ver músicas mais elaboradas como elitista, principalmente quando os artistas são do povo. Nós queremos acessar festivais maiores, mas também acreditamos na formação de público em espaços culturais acessíveis, e através de projetos que nos coloquem perto de crianças e jovens. Festivais menores com mais aporte financeiro, para conseguir ter ingressos mais acessíveis, seria uma boa também. Isso em todo canto, evitaria a formação dessas grandes bolhas de poucos festivais, que conseguem beneficiar poucos artistas e um público restrito, frente o tamanho do público em potencial. A improvisação, e toda a música que admiramos e queremos tocar, é para o povo. Há um trabalho grande aí, mas estamos deixando uma contribuição para dar mais diversidade e criatividade para as pessoas a cada apresentação do trio.
2112. O "mercado externo" ainda é a melhor saída para músicos e bandas que produzem música instrumental no país. Essa é uma realidade que temos que encarar sem ressentimentos, não é?
Urutu. O que observamos na música instrumental, é que em algum ponto da carreira é importante fazer pelo menos essa passagem pelo exterior, que também vai ficando recorrente. É uma opção a mais, já que nacionalmente as opções são limitadas. Inspirações na produção e na música em si, Hamilton de Holanda morou em Paris e hoje reside no Brasil, e Yamandú Costa hoje em dia vive em Portugal. Em contrapartida, são dois solistas. No Brasil, há inúmeras bandas, trios, quartetos, compositores sem uma rede estável para trabalhar, se apresentar etc. Se o mercado externo for a melhor opção, nós tendo um país de dimensões continentais, isso é um sinal muito ruim para a grande maioria de artistas daqui, que em geral demoram para reunir condições para sair decentemente do país. Isso é feito aos poucos, ao mesmo tempo que uma carreira local/regional/nacional vai sendo consolidada. Leva um tempo, mas acreditamos em integrar e contribuir para uma cena nacional além, é claro, de acessar espaços e festivais no exterior.
2112. Um exemplo seria Hermeto Paschoal cultuado "in loco" pelos gringos e praticamente ignorado em seu próprio país. Isso é uma dura e triste realidade...
Urutu. Sim. Hermeto é mestre, das maiores referências musicais no mundo todo, e enfrenta essa contradição. É inspiradora, e motivadora também, a atitude dele de se manter no Brasil, mesmo com diversas excursões. Com certeza poderia viver cultuado em qualquer país desenvolvido, mas sua presença entre nós é um grande esteio para continuarmos a acreditar na criação artística dentro da Música.
2112. Gostei muito de Nequinha, Urutu em Chamas, Montanhas Azuis e As Horas. Existe projetos de lançar o cd ou mesmo realizar shows no exterior?
Urutu. Queremos muito, e é um assunto que aparece nas nossas conversas. Notamos a grande admiração que se tem em vários países pela música brasileira. Nesse sentido, a América Latina seria um prato cheio para essa troca, além dos países mais desenvolvidos. Não há um projeto para o exterior a curto prazo. Mas sabemos que o próximo trabalho vem para abrir portas, e jogar a luz mais à frente na nossa trajetória. Estamos entrando em uma fase de maior profissionalização, principalmente no que se refere a espalhar nossa música, formar nosso público e acessar novos lugares. Isso vai nos ajudar a romper mais fronteiras, levar nossa música para mais gente, mais culturas.
2112. Urutu completou cinco anos de lançado. Vocês têm projeto de lançar um novo trabalho ainda este ano?
Urutu. Sim, temos. Estamos com um projeto para lei de incentivo no forno, com apoio da Pro-Arte, produtora aqui de Uberaba. E ainda esse ano começaremos as gravações, dando tudo certo, para lançamento em áudio e vídeo ano que vem, em 2023.
2112. E os shows?
Urutu. Em junho (23) tocaremos, pela Fundação Cultural de Uberaba, no Museu de Arte Sacra Santa Rita. E em julho (20) tem Urutu Trio & Marcelo Taynara no Teatro Sesi Minas Uberaba, vai ser um show muito especial para nós, preparado com muito carinho para as pessoas aqui da cidade, com música produzida aqui. Todo mundo convidado pros shows, e a acompanhar a gente nas redes!
2112. Para contratar o show da Urutu ou comprar o cd da banda qual o telefone/e-mail de contato?
Urutu. Contato por e-mail triourutu@gmail.com, ou telefone/Whatsapp (34) 99813-1381. Estamos no Instagram (@urutu.trio) e no Facebook (URUTU). O álbum Urutu de 2017 está disponível só por encomenda. É só nos pedir, que enviamos para todo o país. E em breve vem coisa nova, com certeza daremos um toque para o 2112 ano que vem, assim que lançarmos.
2112. ... o microfone é de vocês!
Urutu. Apoiem artistas independentes, seu apoio é muito importante para tornarmos cada vez mais real, inclusiva, consistente e diversificada a Cultura do nosso País. Ouçam nosso som, e quem curtir fique à vontade para compartilhar, trocar ideias e convites! Queremos tocar na sua cidade, na sua região. Um grande abraço para o Carlos Dinunci e vida longa ao Blog 2112, agradecemos o espaço e a oportunidade. Viva a Música!
Obs.: As respostas estão em terceira pessoa (como Urutu), pois foram fruto de uma conversa entre os três diante da entrevista, compiladas posteriormente por Tarcísio. Foi a maneira mais prática para a banda, devido à correria.
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