O blog 2112 foi formado com intenção de divulgar as bandas clássicas de rock, prog, hard, jazz, punk, pop, heavy, reggae, eletrônico, country, folk, funk, blues, alternativo, ou seja o rock verdadeiro que embalou e ainda embala toda uma geração de aficcionados. Vários sons... uma só tribo!



terça-feira, 28 de agosto de 2018

Entrevista Carlão Gaertner (Parte 01)


A cada passo do Blog 2112 vou me deparando com algumas surpresas como esta de entrevistar o bass man Carlão Gaertner da lendária banda A Chave. Quem conhece ou estuda a história do rock brasileiro sabe da importância desta banda. Nesta histórica entrevista Carlão nos leva de volta a cena do crime... Não posso esquecer que esta entrevista só foi possível a outro bass man: Luiz Domingues a quem eu dedico esta viagem!    

2112. Você começou a conviver com a música muito cedo, visto que a sua mãe era musicista e colocou você aos seis anos para estudar acordeão. Mas porque você desistiu de estudar o instrumento?     

Carlão Gaertner. A minha mãe tinha um acordeão de 120 baixos, que era muito grande para meu tamanho na época. Eu tinha que tocar de pé nas aulas, para poder enxergar os teclados. Só que depois de um tempo de aula eu cansava com o peso do instrumento e tinha que sentar, só que daí eu não enxergava mais os teclados e acabava errando as notas. Esse suplício durou seis meses e daí eu desisti. A própria professora falou para minha mãe que eu deveria esperar pelo menos dois anos para voltar a estudar acordeão. Mas, isso nunca aconteceu (rs).

2112. Por sua mãe tocar piano clássico e acordeão você devia ouvir muita música em casa, não?        

Carlão Gaertner. Nós tínhamos uma vitrola daquelas de móvel em casa, e minha mãe tinha uma coleção de LPs de música clássica, de música popular americana (a maioria orquestrada) e italiana e uma coleção de discos de 78 rpm de música brasileira, os famosos cantores e cantoras do rádio das décadas de 40 e 50. Era o que ouvíamos em casa, além do rádio, muito presente naquele tempo. Nessa época ainda não havia música para a juventude no Brasil, mas isso mudou na segunda metade dos anos 50, com a chegada inicial do Rock no país.

2112. A sua vida e a sua visão de música mudou em 1957, após assistir Jailhouse Rock com Elvis Presley no cinema. Foi um impacto muito grande na sua vida?   

Carlão Gaertner. Eu diria que foi um dos maiores impactos na minha vida, pois foi paixão desenfreada ao primeiro acorde. Imagine um garoto de 8 anos e de calça curta no cinema, carregando um pilha de gibis que levava pra trocar na porta do local antes das sessões da matinê, ver um cara bonito rebolando e soltando aquela voz e fazendo todo mundo dançar na tela e a plateia bater os pés no chão acompanhando o ritmo. Foi uma tremenda loucura e até hoje tenho a imagem vívida na minha cabeça, pois fiquei completamente alucinado dentro do cinema (rs). Essa sensação repetiu-se alguns anos mais tarde, na primeira metade dos Anos 60, quando assisti “A Hard Day’s Night”, o filme dos The Beatles pela primeira vez. Acho que assisti umas vinte vezes enquanto filme permaneceu em cartaz. Logo depois passou o filme “The T.A.M.I. Show”, concerto apresentado pela dupla de cantores da “Surf Music” Jan & Dean. Assisti o "The T.A.M.I. Show" no cinema, na metade dos Anos 60, em Porto Alegre, um tempo depois de assistir "A Hard Day's Night", dos The Beatles, e foi a primeira vez que vi ao vivo outros artistas e bandas americanos e ingleses. Principalmente, os que mais me impressionaram: The Rolling Stones (que eu já tinha discos), Chuck Berry (que eu só conhecia de nome do álbum "With The Beatles”, com a música “Roll Over Beethoven”, e que virou paixão no ato), o explosivo showman James Brown (com sua hipnótica performance no palco), The Beach Boys (a versão 'surf music' do rock de Chuck Berry naquela época), e os ingleses do Gerry And The Pacemakers (que eu também já tinha disco, “Ferry Cross The Mercy”), entre outros. Foi mais uma porrada sonora na cabeça de um adolescente já vidrado em Rock And Roll.

A mamãe Mafalda Senegaglia Gaertner e o pequeno Carlos Augusto

2112. Na época o rock era visto como uma maldição contra os valores tradicionais pela liberdade que dava aos jovens de agir e pensar por eles mesmos. O que seus pais acharam de você ouvir rock’n’roll?  

Carlão Gaertner. Depois de assistir o filme do Elvis Presley eu cheguei em casa e disse para meus pais: - “Eu quero um disco do Elvis”. Os dois me olharam e perguntaram: - “Quem é esse Elvis?”. Daí eu disse que era um cantor americano, que eu tinha assistido um filme dele naquele domingo à tarde e que tinha gostado demais. O tempo foi passando e eu continuava insistindo: - “Eu quero um disco do Elvis”. Só que ainda não tinha disco do Elvis lançado no Brasil e isso veio a acontecer quase um ano depois de eu assistir o primeiro filme. Um dia meu pai disse para minha mãe: - “Pega esse guri, vá até o centro da cidade - no caso Porto Alegre, onde morávamos no bairro Partenon – e veja se encontra um disco desse tal Elvis, que eu não aguento mais esse guri me perturbar com esse pedido. Dito e feito. Finalmente consegui o meu primeiro LP do Elvis e a partir daí comprei todos os discos do Elvis lançados no Brasil até o começo dos anos 60, assim como assisti todos os filmes. Na época eu estudava de manhã e passava as tardes escutando os discos sem parar. Era um Elvis maníaco (rs). Na minha casa o Rock não era visto como uma maldição e meus pais não se importavam com isso. Meu pai só não gostava do ‘barulho’, como ele dizia, quando eu estava ouvindo os discos com volume alto.

2112. Você se lembra do primeiro disco de rock que comprou?

Carlão Gaertner. Foi o primeiro disco do Elvis lançado nos Estados Unidos e, posteriormente, no Brasil. Depois eu comprei King Creole, Jailhouse Rock, G.I. Blues, Elvis Golden Rocords, Viva Las Vegas e muitos outros. Nessa época também comprei discos de Paul Anka, Neil Sedaka, do argentino Billy Cafaro (Marcianita), e do rockeiro italiano Adriano Celentano, cujos discos e filmes foram lançados no Brasil; e mais tarde Peppino di Capri, até Chubby Checker estourar com o Twist, no início dos Anos 60.

 O pequeno Carlos Augusto e seu avô Augusto Senegaglia

2112. Foi o seu avô quem te deu o seu primeiro instrumento: um violão. O que você estuda nesta época visto que não existia ainda aquelas tradicionais revistinhas de cifras? Você tirava tudo de ouvido?  

Carlão Gaertner. Quando eu ganhei o violão do meu avô, eu não tinha um bom ouvido para música e tinha até bastante dificuldade na época. Mas, eu tinha um vizinho, o Anyres Marcos – que mais tarde fez parte d’Os Brasas, banda gaúcha que estourou em São Paulo na época da Jovem Guarda – que tocava bem violão e tinha um super ouvido. Ele afinava meu violão e foi quem me passou os primeiros acordes e as primeiras músicas. Nós passávamos as tardes ouvindo os discos e tirando algumas músicas mais simples. Nessa época já ouvíamos The Ventures, The Shadows e acabamos montando nossa primeira banda tocando as músicas instrumentais desses grupos como Apache, Lonely Bull etc. Como ainda tinha certas dificuldades, acabei indo para o baixo, onde tocava nas quatro cordas de cima do violão, só marcando as notas. Era um baixista de uma nota só. Conhecia todos os acordes básicos e o lugar da nota dominante dos tons no baixo, mas não sabia nenhuma escala. Era só Tum, Tum Tum, Tum Tum etc... Assim tudo começou. Um dia eu estava sentado com minha vitrola portátil e o violão na área da frente da minha casa, tentando descobrir o tom de algumas músicas que estava ouvindo, e passou outro amigo meu, o Ernani, que era baixista numa outra banda do meu bairro. Ele entrou e ficou conversando comigo, daí pegou meu violão e me mostrou as primeiras escalas de baixo, tipo cinco notas seguidas na escala: Tum Tum, Tum Tum Tum e as variações que podia fazer dentro daquele desenho da escala, que podia ser aplicada em qualquer tom. Foi aí que acendeu a luz no fim do túnel para mim como baixista e o resto é história, pois passava horas praticando aquela escalas nos mais diversos tons; e também passei a aplicá-las nas primeiras músicas do repertório de nossa iniciante banda juvenil.

2112. A despeito de Elvis ser considerado o “Rei do Rock”, sempre achei Litlle Richard o verdadeiro rockman deste período. Suas performances no palco eram incríveis, sua voz maravilhosa e sua música totalmente selvagem. Quem eram seus ídolos?

Carlão Gaertner. Nos Anos 50 meu grande ídolo foi o Elvis Presley. Os discos de Little Richard, Chuck Berry, Jerry Lee Lewis, Fats Domino etc eu só passei a curtir nos Anos 60, pois na década de 50 eram muitos raros no Brasil. Adoro Little Richard, mas dessa turma Chuck Berry passou a ser meu grande ídolo e uma grande referência na cena Rock And Roll. O Richard era até mais explosivo em alguns momentos, mas o Chuck Berry, com sua guitarra, desvendou a magia, os riffs e a malandragem do Rock, unindo seu som às suas letras alegres e maliciosas. É, na minha opinião, o Maior Ícone do Rock. E o John Lennon também concorda comigo (rs). Outro pioneiro da guitarra dos Anos 50 que também influenciou dezenas ou centenas de guitarristas e outros músicos foi Scotty Moore, do trio que acompanhava Elvis, ao lado do Bill Black (baixo) e D.J. Fontana (bateria).

Ivo Gaertner e seus filhos
 
2112. Você além do rock mergulhou de cabeça no blues. Como você conseguia material para ouvir, pois pouquíssima coisa ainda hoje é lançada no Brasil?

Carlão Gaertner. Quando os Beatles e os Stones surgiram na mesma época, mostraram claramente essas duas vertentes. The Beatles era mais Rock And Roll no início, e The Rolling Stones eram uma banda de Blues que também tocava Rock. Depois do Boom da Beatlemania eu curti e tinha discos de praticamente todas as bandas inglesas: The Who, The Animals, The Swinging Blue Jeans, Gerry & The Pacemakers, The Kinks, The Dave Clark Five, The Hollies, Peter & Gordon, Herman’s Hermits, Manfred Man, The Yardbirds, The Spencer Davis Group, The Troggs etc. Muitas dessas bandas também tinham influências do Blues e fui ficando cada vez mais apaixonado pelo gênero. Depois mergulhei também no rock americano, curtindo Jefferson Airplane, Bob Dylan e The Byrds, principalmente. Meus primeiros discos de Blues com as estrelas negras do gênero eram na maioria todos importados e passei a ser um colecionador, não só de discos, mas também de livros, enciclopédias musicais, revistas especializadas de Rock e Blues etc. Tenho um acervo de quase 2 mil LPs - grande parte importados - mais de mil CDs e uns 200 DVDs, fora as publicações já citadas. Gostaria de levar tudo isso para a Eternidade, mas lá acho que vou encontrar todos os meus ídolos ao vivo e nas cores celestiais fazendo o maior som, seja no Paraíso ou qualquer outro lugar (kakakakaka). Além dos discos importados, sempre comprei também os lançamentos nacionais de Rock e de Blues que me interessavam. Por exemplo; do bluesman Robert Johnson, “The King Of The Delta Blues Mississippi”, eu devo ter umas seis ou mais edições diferentes entre LPs e CDs.

2112. O seu vizinho Anyres Marcos (no Facebook), que já tocava guitarra contribuiu bastante na sua formação como músico, não é? O que ele dizia para você? 

Carlão Gaertner. O Anyres sempre teve muita paciência comigo no início de nossa jornada musical e de meus primeiros passos na Música. Pode ser que ele até pensasse naquele tempo: - “Por que o Carlos não desiste? Ele não tem a menor aptidão para a música” (rs). Mas ele nunca me disse isso, pois acho que entendia a paixão que eu tinha, apesar das minhas dificuldades e limitações no começo. Além disso, eu era o dono do violão (um Del Vecchio) e tinha ainda minha radiola portátil e todos os discos, que eu levava para todo lugar. É como aquele guri que não joga nada de futebol, mas é o dono da bola. Por isso, sempre está no time (rs). E também, como leonino convicto, eu era muito teimoso e quando colocava uma coisa na cabeça eu sempre ia em frente e nunca desistia. Os primeiros anos foram muito difíceis, mas fui superando as barreiras e consegui dar a volta por cima. Depois que Anyres saiu de nossa banda e entrou para Os Brasas, mudando-se para São Paulo com seu novo grupo, eu e os demais membros montamos uma nova banda com um novo guitarrista, chamada Os Frenéticos, inspirados no Gerry & The Pacemakers, depois que o filme “Ferry Cross The Mersey” estreou no Brasil, com o título de “Os Frenéticos do Ritmo”. Essa formação durou pouco tempo e ainda naquele ano, 1965, fui convidado a entrar para outra banda do bairro Petrópolis, vizinho ao Partenon onde eu morava, chamada Beat Group Company, ou Beat Group Cº, que durou até 1968, quando retornei para Curitiba, cidade onde nasci. O Beat Group já tinha uma nova proposta, bem mais criativa e um som bem mais pesado. Tocávamos Beatles, Stones, The Troggs, The Who, The Animals, The Shakers, banda argentina que fez sucesso no Brasil e teve LPs lançados no nosso país, entre outros; e até Steppenwolf, no último ano de sua formação. Mas o mais importante era que desde o início de nosso quinteto – formação semelhante aos Stones: vocalista, duas guitarras (e ‘backing vocals’), baixo e bateria – também compúnhamos músicas próprias com letras em inglês e que também agradavam ao público em nossas apresentações, além das músicas do repertório internacional. A partir daí, aflorou também a faceta de compositor, e a vontade de fazer cada vez mais músicas próprias. Na época que atuou em Porto Alegre (1965/68), o Beat Group Cº foi uma das melhores banda de Rock de Porto Alegre, ao lado do Som Quatro (que só tocava Beatles) e dos Cleans, entre outros grupos. Mas isso já é outra e longa história.
                                  
2112. Ele tocava no grupo Os Brasas que causou sensação na época. Você chegou a tocar com eles?   

Carlão Gaertner. Quando eu ainda tocava com o Anyres, a nossa banda tocou junto com Os Brasas em vários clubes em Porto Alegre, e éramos muito amigos. Eu estudei o primário inteiro junto com o Franco, no Ginásio Santo Antônio, que era o baixista dos Brasas. Depois que o Anyres – o Alemão, como era chamado – entrou para Os Brasas, eles ainda tocaram um tempo na cidade, antes da banda ir morar em São Paulo. Quando eu terminei o colegial na Escola Técnica Parobé, no curso de Eletrotécnica (equivalente ao científico, naquele tempo), eu me mudei sozinho para São Paulo para procurar emprego naquela área técnica, e até cheguei a fazer algumas entrevistas. Mas também me encontrei com Os Brasas, e acabei morando com eles durante dois meses e curtindo intensamente a Paulicéia dos Anos 60. Eles tocavam quase toda noite em boates e bares de Rock, como a boate Night And Day, o famoso Saloon, na Rua Augusta, onde tocava o Som Beat, uma banda da pesada, e algumas vezes cheguei a dar uma canja com Os Brasas. Tinham tmabém um programa de TV próprio na TV Excelsior, na onda do da Jovem Guarda: um musical de auditório, com várias atrações. Como deixei de procurar emprego, quando a grana acabou, eu voltei para Porto alegre e fui contratado como técnico pela Phillips SA., na seção de Eletromedicina. Sou amigo do Anyres até hoje, e volta e meia nos falamos por telefone, e ele também já veio me visitar em Curitiba. Nessa visita, fomos uma noite no bar Crossroads ver a banda Crackerjack tocar, e acabei dando uma canja com o grupo. Ou seja, depois de quase 50 anos, o Anyres me viu tocar novamente. Quando sai do palco e nos reunimos de novo, ele me disse: - “Agora você está tocando certinho no beat”, e deu uma tremenda risada. E eu respondi: - “Você também é responsável por isso”. E continuamos com as risadas...

2112. No início dos anos 60 você passou a ouvir bandas instrumentais como The Shadows, The Ventures, The Clevers que mais tarde trocaria o nome para Os Incríveis. Foi um período muito fértil para sua formação como músico, não?   

Carlão Gaertner. Eu diria fértil e fundamental, porque foi o começo do aprendizado musical. Tanto o The Shadows como o The Ventures tinham um som de guitarras ‘incrível’, fazendo um trocadilho, com músicas com muito clima, variações rítmicas, e uma técnica apurada. Nessas bandas, eram os instrumentos que ‘falavam’, já que não tinham vocais. Foi aí que me liguei nos timbres (limpos e cristalinos), nos efeitos (reverb e trêmolo) e na qualidade do som, despertando meu interesse para instrumentos de melhor fabricação, no caso, os importados. Só que naquela época, isso era um sonho impossível no Brasil, muito mais em Porto Alegre, onde a maioria das bandas usava guitarras fabricadas pela Mil Sons, um fabricante local que tinha um processo de produção quase artesanal nos anos 60. Meu primeiro baixo legal foi um Gianinni, modelo Gemini, inspirado no Fender Jaguar (1965), que comprei um tempo depois que entrei para o Beat Group, assim como um amplificador Gianinni valvulado, modelo Thunder Sound. Meu sonho de garoto virou realidade muitos anos depois, quando comprei meu primeiro Fender Precision Bass (1974), no início de janeiro de 1975, junto com um Marshall Major de 200 Watts na cor vermelha, com duas caixas de som com quatro falantes de 12” cada uma (o mesmo modelo usado por Jimi Hendrix, Jimmy Page e Eric Clapton, na fase do Cream, entre outros monstros sagrados do Rock), quando A Chave comprou todo o seu equipamento e instrumentos importados em São Paulo, na loja Leimar, e parte na empresa Transasom, do meu amigo Eduardo.

 Carlos Augusto e seus irmãos

2112. E como surgiu Os Frenéticos?

Carlão Gaertner. Como já comentei anteriormente, Os Frenéticos foi montado quando o Anyres saiu de nossa primeira banda, e entrou um novo guitarrista solo. A formação era guitarra solo (e ‘backing vocals’), guitarra base num violão elétrico e vocal principal – que era um diferencial na época, por ter também esse timbre acústico no som da banda, recurso que também era usado pelos The Beatles em algumas músicas - baixo e bateria.

2112. A banda era fortemente influenciada pela “British Invasion” que tinha como ponta de lança The Beatles, Animals, The Who, The Rolling Stones, Gerry & The Pacemarkers, The Yardbirds... entre outros. Neste período vocês já compunham?    

Carlão Gaertner. Não, na fase d’Os Frenéticos tocávamos músicas de algumas das bandas citadas na pergunta, algumas músicas do Renato & Seus Bluecaps (por ser em português) e algumas músicas instrumentais dos grupos que já citei; e ainda da Aladin Band, The Jordans, Incríveis, etc. Mas essa formação durou pouco tempo.

2112. Logo você foi para o Beat Group, que tinha um som bem mais pesado. Vocês faziam muitos shows?    

Carlão Gaertner. A época do Beat Group foi a mais significativa em termos de som e de postura de banda nos meus primeiros anos como músico e baixista, em Porto Alegre. Quando fui convidado para entrar para a banda – que estava procurando um baixista - o grupo só tinha como membros o Lairton Rezende, também chamado de Alemão, como o Anyres, que era o guitarrista solo e também fazia vocais, o Jorge na bateria e o Ruy no vocal principal e percussão com pandeiro e maracas. Eu sugeri a eles para convidarmos o Maurinho, um guitarrista base que também cantava, que morava a duas ruas da que eu morava, e que era muito meu amigo. O Maurinho aceitou o convite e começamos a ensaiar nos fundos de minha casa, numa sala ao lado da garagem do carro do meu pai. Só que a aparelhagem que a banda já tinha eram amplificadores Delta – desses usados em festas de igreja e quermesses (rs) - com entradas adaptadas para cabos de guitarra e baixo e um para vocal, e um baixo feito em casa, sem trastes e com o braço meio empenado. Ou seja, uma tremenda piada, mas era o que tínhamos no início da banda. Depois de alguns meses de ensaio e com um repertório significativo, resolvemos que era o hora de tocar em público. Convidamos uma amiga minha, a Claudete, que era a secretária e assessora do Rossi, principal empresário de bandas de Porto Alegre para assistir um ensaio, para ver se poderíamos também ser empresariados por ele. No final do ensaio, a Claudete falou que adorou o som da banda, o nosso repertório e tudo mais, mas que com aquela aparelhagem não dava para o escritório do empresário oferecer a nossa banda para os clubes com que eles trabalhavam. Aí deu um branco total em todos nós. Falamos para a Claudete que iríamos resolver a questão do equipamento e que voltaríamos a fazer contato. Daí eu tive uma ideia e fui falar com o Gilberto Arone, que era amigo da minha família – casado com uma amiga da minha mãe, Mafalda S. Gaertner - e advogado da Caixa Econômica Estadual do Rio Grande do Sul. Perguntei a ele se tínhamos condições de tirar um empréstimo pra comprar nosso equipamento e ele me informou que seria possível se arranjássemos um sacador e um avalista com garantias, para fazer o empréstimo para nós. Voltei e informei a situação para os demais membros da banda e daí fizemos uma reunião com o pai do Lairton e a mãe do Jorge (cujo pai já tinha falecido), explicamos a situação e convencemos os dois a realizar a operação bancária para nós. Daí voltamos a nos reunir com o Gilberto na Caixa, e levamos os dois coroas junto para dar entrada no processo. O empréstimo foi aprovado, pegamos a grana e fomos na principal loja de instrumentos musicais de Porto Alegre, e compramos uma aparelhagem e instrumentos novos: uma guitarra semi acústica Snake (solo), fabricada com pinho sueco e captadores e tarraxas importadas; uma Gianinni Supersonic (base); uma bateria Pinguim, imitação da Ludwig do Ringo Starr, com caixa metálica, pratos e chimbau; dois amplificadores True Reverb, da Gianinni, para guitarras; um baixo Gianinni, modelo Gemini, e um amplificador Thunder Sound para baixo;  e um sistema Phelpa de 100 Watts para a voz – com mixer e duas colunas com 3 falantes de 12” cada, mais dois pedestais para suspender as colunas, e mais três microfones para os vocais. Moral da história: junto com o Som Quatro, éramos as duas bandas que tinham o melhor equipamento em Porto Alegre, e o empresário Rossi daí nos contratou e passamos a tocar sem parar. Às vezes, nos fins de semana, tocávamos em quatro ou cinco clubes numa mesma noite (uma hora de apresentação), com intervalos de 45 minutos a uma hora entre um show e outro, dependendo da distância entre os locais, pois era uma prática comum dos clubes contratar várias bandas na mesma noite. E nossa aparelhagem cabia inteira dentro de uma Kombi e levava 10 a 15 minutos para  montar e não tinha passagem de som como hoje em dia: era só ligar os amps nas tomadas do palco, plugar os cabos e os microfones, montar a bateria e mandar bala (kakakakakakaka). Era uma loucura e uma correria danada. Mas a gente se divertia pra cacete e não dependia mais de ninguém. Isso porque a maioria das bandas só levavam a aparelhagem de palco e cantavam no equipamento de voz dos clubes: normalmente, aqueles amplificadores Delta que já comentei, um ou dois microfones e duas caixinhas pequenas de som penduradas nas paredes ao lado do palco. Com o som de qualidade e volume de nosso equipamento de voz Phelpa e vocais com três vozes, nós arrasávamos (kakakakakaka)
Perto do final de 1968, o Lairton foi convidado para entrar para Os Cleans para tocar teclados (antes de tocar guitarra, ele fez o curso e formou-se em Acordeão no conservatório, em Porto Alegre), que iriam acompanhar o Hermes Aquino (que era o guitarrista base do Som Quatro e um dos cantores da banda, e que estava iniciando sua carreira solo), e a cantora Laís Aquino Marques, na eliminatória paulista do IV Festival Internacional da Canção, em 1969. Hermes Aquino com a música “Flash”, com arranjo do maestro Julio Medaglia, se classificou em primeiro lugar na eliminatória, e Laís Aquino Marques em terceiro lugar, com a música “Sala de Espera”. Com a saída do Lairton e o fim do Beat Group Cº, eu voltei para morar com minha família em Curitiba, no final de novembro de 1968. Meus pais já tinham se mudado de Porto Alegre para Curitiba em 1967, e eu passei um ano e meio morando sozinho e trabalhando na Phillips, Seção de Eletromedicina, como técnico de dia, e tocando no Beat Group quase todas as noites. Um verdadeiro Zumbi do Rock, pois dormia no máximo quatro a cinco horas por noite durante todo esse período e trabalhava o dia inteiro. Durante a semana, tocávamos na Boate Garrafa, dividindo o palco com a banda Liverpool, que depois virou o Bixo da Seda. Sou até hoje amigo dos irmão Lessa, o Mimi e o Marcos. Loucura total (rs). Depois dos Cleans, o Alemão Lairton tocou ainda teclados com o ES Trio, Eduardo Araújo e Silvinha Trio, em São Paulo e pelo Brasil durante um tempo, e veio com eles para um show em Curitiba, em 1969, na Feira do Parque Castelo Branco, que eu assisti em cima do palco. Foi um reencontro emocionante.

 O jovem Carlão
  
2112. Depois de sua saída da Beat Group, e antes de formar A Chave, você participou de mais duas bandas. Você poderia falar um pouco deste período que é um tanto obscuro para muitos fãs?

Carlão Gaertner. Assim que eu cheguei de volta a Curitiba, eu conheci o Ivo Rodrigues Júnior, que era cantor e apresentador do programa Juventude Alegria, na TV Paranaense – Canal 12 (antes de ser filiada à Rede Globo), e o guitarrista Cesar Tempski, da banda Os Primatas, no aniversário de 15 anos de uma prima minha, que foi realizado na Sociedade Garibaldi. O Cesar era irmão do João Carlos Tempski, que era namorado de outra prima minha, e foi o João Carlos quem me apresentou os dois e disse a eles que eu também tocava numa banda em Porto Alegre e que recém tinha voltado para Curitiba. Sentei com eles durante a festa e ficamos conversando sobre música, para variar, e também ficamos amigos no ato. E no meio da festa, nós três ainda demos uma canja com o baterista da banda de baile Bepe & Seus Solistas, que estava animando a comemoração. Esse primeiro encontro com o Ivo foi também o início de nossa relação musical. Logo depois o Ivo me apresentou o guitarrista Rodney Luiz França, e viramos amigos inseparáveis. Tocávamos às vezes nos sábados à tarde no programa de TV que o Ivo apresentava, e nos sábados à noite nós percorríamos os clubes de bairro onde sabíamos que estavam tocando bandas conhecidas. Entrávamos os três e ficávamos curtindo parados na frente da banda que estava tocando. Quando a banda fazia um intervalo, nós pedíamos para dar uma canja e tocávamos 3 ou 4 músicas com o baterista da banda contratada, fazendo o maior esporro no palco. Antes de começar a tocar, nós anunciávamos no microfone que éramos o trio Som Fúnebre e que não tínhamos baterista (rs). No final de nossa apresentação relâmpago, agradecíamos e partíamos para outro clube e assim sucessivamente. Um tempo depois nós três, com mais dois músicos (guitarra e bateria) remontamos Os Primatas que tinham dissolvido a banda original, na qual o Rodney e o Ivo já tinham tocado com eles algumas vezes, e que durou pouco tempo. Durante esse período, nós conhecemos o pessoal d’A Chave e ficamos amigos. De vez em quando nós íamos ver os ensaios deles e tocávamos juntos, só de curtição. Essa piração durou até 1970, quando o Orlando Azevedo, baterista d’A Chave, de quem eu já era amigo, assim como dos demais membros da banda, veio falar comigo e me disse que estava a fim de convidar o Ivo para ser vocalista da banda, pois o Toninho Bacilla, que era o vocalista, tinha sofrido um acidente e não podia mais participar do grupo. Daí o Orlando me perguntou se não tinha problema, já que eu e o Ivo tocávamos juntos. E respondi que não e daí começou uma nova história.

2112. E como surgiu A Chave?

Carlão Gaertner. A Chave originou-se da banda Os Jetsons, fundada em 1967 no município Palmeira, perto da cidade de Ponta Grossa, no interior do Paraná. Em 1969, já em Curitiba, o grupo mudou o nome para A Chave, que estreou com um programa próprio na TV Paraná, Canal 6, com direção de Valêncio Xavier. Nessa época o português Orlando Azevedo ainda não era o baterista, mas participava da banda como mentor da mudança de nome e orientador artístico da nova proposta do quinteto. Um tempo depois, com a saída do baterista Franco, ele assumiu o seu lugar e em seguida, no início de 1970, foi ele quem convidou o Ivo Rodrigues para ser o vocalista d’A Chave.
Nesse mesmo ano, A Chave participou da peça “A Semana”, montagem do Grupo XPTO, com texto da conhecida autora, atriz e produtora teatral Denise Stoklos, e direção de Ari Para-raios, apresentada no extinto Teatro de Bolso, na Praça Rui Barbosa. Na peça, os cinco membros d’A Chave, vestidos apenas com sungas pretas, participavam como músicos e atores, junto com os demais artistas do elenco, e também executavam ao vivo durante a encenação as músicas da trilha sonora da montagem. Era um espetáculo totalmente contracultural e performático e no final de cada apresentação quase sempre acontecia um ‘happening’ entre todo o elenco e a plateia. Nessa nova fase inicial da banda eu ainda não fazia parte do grupo, mas estava o tempo todo curtindo com seus integrantes, principalmente, o Orlando – que até hoje é um dos meus maiores amigos – e o Ivo no dia-a-dia, quando a banda não estava atuando. Quase todos as tardes, nós três nos reuníamos no apartamento de um outro amigo, chamado Celso Ferraz, ou Celso Geleka - como também era chamado - e ficávamos ouvindo Rock sem parar – os dois primeiros álbuns do Led Zeppelin, que recém tinham sido lançados e que era uma porrada sonora na época, Steppenwolf, Jimi Hendrix, Stones, The Who, Mutantes e os dois primeiros LPs d’O Terço, em sua formação inicial, entre outros - com o apê completamente enfumaçado e um ‘cheirinho bom’ pairando no ar (rs). Celso era o autor da música “Geleka”, que A Chave defendeu no Festival Universitário da Universidade Federal do Paraná, em 1970. A canção ganhou o prêmio de “Melhor Letra” do festival. Foi num desses encontros que nasceu a ideia de morarmos todos juntos numa casa, e que também seria o local de ensaios d’A Chave. Então, no início de 1971, alugamos uma casa com porão na Rua Padre Anchieta, no bairro Mercês, e começamos uma nova aventura. Assim nasceu a famosa Casa Branca d’A Chave, que tornou-se um polo emissor de novas ideias e o maior centro da contracultura curitibana nos Anos 70 durante sua existência, até maio de 1974.

A lendária A Chave
2112. A banda era mais que uma simples banda... era uma catalizadora de ideias com um QG que tinha sala de ensaios (um luxo para a época!), biblioteca, sala de exposição de artes plásticas, equipamentos gráficos para elaboração de cartazes, laboratório fotográfico... Era uma verdadeira efervescência cultural, não é?      

Carlão Gaertner. Assim que nos mudamos para a casa – eu, o Orlando, o Celso e outro amigo chamado Fernando Bittencourt, resolvemos fazer uma reforma e algumas mudanças no imóvel, para adaptá-lo às nossas necessidades pessoais e às da banda. Foi construído um muro alto na frente, com um pesado portão de madeira, para isolar a visão da casa da rua, já que o movimento diário de malucos cabeludos, amigos, músicos e visitantes de fora de Curitiba visitando o local era enorme e constante, e já que também volta e meia ficava uma viatura da Polícia Civil, da Delegacia Anti Drogas, parada durante  um tempo ou até horas na frente da casa, na calçada oposta, apesar de nunca terem entrado; na parte superior da habitação foram feitas umas divisórias internas para definir os quartos dos moradores fixos; e no porão foi construído um estúdio de ensaio, totalmente revestido com placas acústicas de Eucatex, nos moldes dos estúdios profissionais, para abafar o som nos ensaios e não incomodar a vizinhança, e assim evitar problemas ou visitas indesejadas, pois os ensaios entravam noite a dentro diariamente. Anexa ao estúdio tinha também uma pequena sala de gravação e som, com dois gravadores Akai de rolo, gravador cassete Kenwood e uma pickup para ouvir LPs. Tinha ainda uma sala para a produção de peças gráficas e artes plásticas com pranchetas, para os artistas que gravitavam em torno da banda e que produziam seus materiais gráficos: posters, panfletos, programas etc; e no fundo, num outro espaço, foi montado um pequeno laboratório fotográfico com câmera escura para revelação de fotos em preto e branco. E finalmente, pintamos a casa por fora e todo o telhado totalmente de branco, que virou então oficialmente a famosa Casa Branca d’A Chave.
Durante os três anos e meio de sua existência, passaram pela Casa Branca, além de seus visitantes habituais, várias personalidades nacionais consagradas da Música e da cultura brasileira. Dentre eles Gilberto Gil e sua banda, quando da temporada do show “Expresso 2222” em Curitiba. O Gil quando chegou na casa entrou diretamente pela porta do porão que dava acesso diretamente para o hall do estúdio de ensaio e à sala de gravação. Assim que ele cruzou a porta, ele exclamou: -“Uau, parece que eu estou em Londres”. Durante a visita, o Lanny Gordin, guitarrista da banda do Gil entrou no estúdio e ligou a guitarra do Paulinho Teixeira, guitarrista d’A Chave, e ficou improvisando em cima do som da fita de rolo dum projeto d’A Chave – o Sangue das Máquinas - realizado na Fundição Irmãos Mueller, onde seus integrantes tocaram temas de improviso em cima do som e da batida produzidos pelas máquinas da fundição, ligadas alternadamente durante aquele evento, que colocamos para tocar para mostrar para os visitantes. Na saída da visita, Lanny nos presenteou com um distorcedor Fuzztone, que ele tinha comprado no Japão. Esse fato foi registrada na Revista Bondinho, quando da entrevista do Gilberto Gil sobre o álbum “Expresso 2222”. Na publicação, Lanny Gordin declarou: - “Eu dei meu distorcedor para um conjunto chamado A Chave, de Curitiba”. Além do Gil, também visitaram a Casa Branca Rita Lee & Tutti Frutti, na temporada do show “Atrás do Porto Tem Uma Cidade”, que foi o início da minha amizade com o guitarrista Luiz Carlini - que anos mais tarde viria tocar comigo nos Bartenders, junto com baterista Franklin Paolillo, e os demais membros da banda: Lee Marcucci, Emilson Colantonio e Lucinha Turnbull; o cantor Antonio Marcos, que foi casado com a Vanusa; o poeta e escritor Décio Pignatari, amigo do poeta Paulo Leminski, que era parceiro d’A Chave na elaboração das letras das músicas da banda, e um frequentador assíduo do local; o produtor e diretor Altair Lima, de São Paulo, junto com a atriz Sonia Braga e parte do elenco da peça “Hair”, quando foi apresentada em Curitiba; e várias outras figuras conhecidas entre atores, jornalistas, escritores, cineastas e artistas plásticos. A Casa Branca foi, ao longo de sua existência, um verdadeiro caldeirão cultural em permanente ebulição.

2112. Como era administrar tudo isso e ainda achar tempo para compor, ensaiar e fazer shows?  

Carlão Gaertner. Eu e o Orlando assumimos definitivamente o direcionamento artístico e musical d’A Chave e a realidade cotidiana da Casa Branca. Mas tudo era feito e resolvido naturalmente, de forma democrática entre todos os membros participantes, no meio daquela efervescência e loucura total. Quando eu fui morar na Casa Branca, desde o seu início, eu ainda não tocava n’A Chave. Assim que construímos o estúdio, eu fui para São Paulo e meu avô materno – com quem eu morava antes de me mudar para a casa – me financiou a compra de um equipamento de iluminação para ser utilizado na banda, e passei a operar a luz e o som nas apresentações do grupo. Eu comprei vários mini-spots que usavam gelatinas coloridas, uma máquina de projeção de bolhas psicodélicas – tipo um projetor de slide onde girava um disco de vidro duplo e lacrado com líquido de várias cores dentro, e que ia mudando as imagens conforme girava; e um equipamento de luz estroboscópica, com três módulos com duas lâmpadas em cada um e três cores diferentes em cada módulo – azul, branco (central) e vermelho – e que davam um puta efeito visual quando ligados juntos. Psicodelia total (rs). Isso durou até meados de 1973, quando de operador de luz e som assumi o baixo na formação d’A Chave, com a saída do Zito Bacilla, que tocava no grupo desde a época da fundação d’Os Jetsons. Tocamos ainda como quinteto – vocalista, guitarra, baixo, bateria e teclados até final de 1973, quando o Eli Alves, que era o tecladista, formou-se em Engenharia Química e deixou o grupo. A saída do Eli provocou uma mudança radical na continuação d’A Chave, pois a maioria do repertório com as músicas do rock internacional da banda tinha também a presença marcante dos teclados e, sem esse instrumento no grupo, boa parte do repertório ficou comprometida e até impraticável. Uma nova mudança de rumo ficou pairando no ar e A Chave foi novamente à luta, partindo para a sua definitiva e mais significativa formação, como quarteto, fato que comentarei mais adiante na entrevista.
2112. Muitas ideias bacanas devem ter surgido nessa convivência com várias mentes pensantes...

Carlão Gaertner. Sem dúvida, foi um dos momentos mais criativos da vida artística, cultural e contracultural de Curitiba, na primeira metade da década de 70. Uma das primeiras iniciativas d’A Chave na Casa Branca foi a produção e posterior realização do I Recital Pop no Guairinha, em 1971, Auditório Salvador de Ferrante, da Fundação Teatro Guaíra. Tudo começou com intensos ensaios após a definição do repertório do show, elaboração de material gráfico – programa e folhetos – material de divulgação com release e fotos etc e a gravação de efeitos sonoros que entrariam no início de algumas músicas durante a apresentação: o sino do início da gravação de “Black Sabbath”, que depois fundia-se com a execução d’A Chave; assim como, as vozes das crianças do início da música “I Can Feel Him In The Morning”, do Grand Funk Railroad, do álbum “Survival”. E, junto à Fundação Teatro Guaíra, solicitamos para ter um piano de cauda no palco, para a execução de suíte de piano integrante da música “For Ladies Only”, do grupo Steppenwolf, que o tecladista Eli Alves reproduzia na íntegra, e que também foi utilizado em “In Held ‘Twas In I”, do grupo Procol Harum. Foi o primeiro show de Rock com uma banda local em teatro em Curitiba. Logo depois realizou o projeto “Sangue das Máquinas”, que já comentei durante a visita de Gilberto Gil e banda à Casa Branca.
Outra delas foi conhecer o professor de Comunicação da USP, José de Jesus Seixas Patriani, que veio a Curitiba para participar da Semana de Arte Moderna da Escola de Música e Belas Artes local. Em sua palestra, Patriani comentou sobre o laboratório de Comunicação e Criação Vishna-Bharati, que ele fundou em São Paulo, similar a uma experiência que ele tinha conhecido na Índia. Baseado em seu modelo e orientação, foi que nós registramos juridicamente o Laboratório de Comunicação e Criação A Chave, com sede na Casa Branca, oficializando o que já rolava de forma instintiva no grupo. E pra não me alongar demais, a parceria que desenvolvemos com o poeta e escritor Paulo Leminski, que resultou na criação de várias canções, com músicas do grupo e letras do Leminski. Essa parceria também gerou mais tarde o projeto “Em Prol De Um Português Elétrico”, que era um estudo fonético sobre a plasticidade e sonoridade de vocábulos, frases e rimas em Português, voltadas para letras de Rock. Já na segunda metade dos Anos 70, quando a parceria ficou mais esporádica, numa visita do Leminski com o poeta Décio Pignatari a um ensaio d’A Chave num outro local, Décio comentou conosco que discorreu sobre esse projeto do Leminski com A Chave num Congresso de Comunicação realizado em Milão, na Itália, onde ele foi palestrante.

2112. Existe uma história de uma visita do Gilberto Gil e sua banda na Casa Branca da Chave como era conhecida em 1972. Como foi que aconteceu isso? O que ele achou de todo aquele aparato cultural?

Carlão Gaertner. O Gilberto Gil fez uma temporada de três dias no Teatro da Reitoria, da Universidade Federal do Paraná, na turnê do show “Expresso 2222”, logo depois que ele voltou do exílio, em Londres. Eu, o Orlando e o Ivo fomos as três noites assistir o show no teatro, com Gil e sua super banda: Lanny Gordin (guitarra), Bruce Henry (baixo), Tuti Moreno (bateria) e Antônio Perna (piano), que naquele momento soava como o Melhor Show de Rock do Brasil. No final do show da primeira noite, um amigo nosso veio dos bastidores e disse que o Gil perguntou se ele conhecia a Casa Branca da banda A Chave, de quem ele já tinha ouvido falar. Nosso amigo respondeu que sim e que nós estávamos na plateia, após assistir o show. Daí fomos convidados ao camarim, conhecemos todo o pessoal e combinamos para no outro dia ele ir visitar com a banda a nossa casa à tarde. Como já comentei numa das respostas anteriores, ele ficou completamente deslumbrado com a estrutura que tínhamos na Casa Branca. Eles ficaram quase duas horas na visita, onde rolaram altos papos e uma ‘jam solo’ privê com Lanny Gordin na guitarra do Paulinho, guitarrista d’A Chave no estúdio. Foi um encontro memorável: - “O Expresso 2222 fez uma escala na Casa Branca d’A Chave, com os seus integrantes a bordo”. Inesquecível. Alguns anos mais tarde, trabalhei na promoção e produção do show “Refazenda” em Curitiba, revendo Gil e relembrando aqueles momentos únicos. Refazendo tudo mais uma vez.

2112. A banda acabou se tornando uma lenda com vários seguidores e abrindo shows de grandes nomes da música que visitavam Curitiba. Na sua opinião, foi tudo muito rápido?  

Carlão Gaertner. Olhando em perspectiva, foi tudo muito rápido mesmo. A última formação d’A Chave – que é admirada e cultuada até hoje: Ivo Rodrigues Júnior (vocal principal e guitarra base), Paulo Teixeira (guitarra solo, harmônica e ‘backing vocals’), Carlão Gaertner (baixo) e Orlando Azevedo (bateria) – durou de janeiro de 1975 a maio de 1979, quando a banda dissolveu-se. No início de janeiro de 1975 foi quando A Chave comprou seu equipamento e instrumentos totalmente importados em São Paulo, depois de ficar um ano parada (1974) e desenvolvendo o projeto “Investimento Em Proposta”, com Paulo Leminski, Luiz Rettamozzo, o famoso Retta, e Osmar Jardim, diretor da Agência PAZ Propaganda, onde os dois trabalhavam como redator e diretor de arte. O projeto “Investimento Em Proposta”, que elaboramos conjuntamente, apresentava a viabilidade financeira e artística de uma banda de Rock, desde que tivesse recursos e equipamentos profissionais para desenvolver seu trabalho. Apresentava também um histórico da banda e de todas as apresentações realizadas até aquele momento pela A Chave em Curitiba, interior do Paraná e Santa Catarina, com quadros descritivos e gráficos, dados do mercado nacional do show-bizz musical, currículo de seus integrantes e a importância do trabalho d’A Chave desenvolvido até aquele momento. E finalmente, a proposta para o investidor que quisesse investir no projeto, com retorno financeiro projetado, e um roteiro futuro pelos três estados do Sul de shows da banda que geraria a receita e o retorno para o investidor, caso o projeto fosse aprovado. Após dezenas de visitas a possíveis empresas investidoras, apresentamos o projeto à empresa C.R. Almeida SA., maior empreiteira do Estado do Paraná, responsável por grandes obras para o Governo do Estado do Paraná e para o Governo Federal, em outros estados. Depois de várias reuniões iniciais na sede da empresa com assessores da diretoria, uma tarde, Henrique do Rego Almeida, Vice-Presidente da empresa, viu eu e o Orlando esperando na sala de recepção da diretoria, e nos convidou para entrar em seu escritório e falou de cara: - “Eu sempre vejo vocês dois por aqui, mas ainda não sei muito bem o que vocês estão querendo. Só sei que tem a ver com a banda de vocês. Afinal, o que vocês estão querendo da C.R. Almeida?”. Então eu e o Orlando começamos a falar sem parar, apresentamos o projeto – que tinha sido impresso em offset pela agência PAZ num pequeno livreto, explicamos tudo que poderia acontecer se o projeto fosse aprovado, e falamos também que éramos amigos da Iô, que era cunhada do Cecílio Rego Almeida, irmão mais velho do Henrique e presidente da empresa, que foi quem nos sugeriu procurar a C.R. Almeida. Depois de quase meia hora de conversa, Henrique levantou o telefone e chamou o advogado Joaquim, que o Orlando conhecia, pois tinham estudado juntos no Colégio Maristas. O Henrique explicou a ele rapidamente o que pretendíamos e perguntou se poderia ser firmada uma cláusula de garantia de aval à empresa num contrato entre a Fundação Cultural de Curitiba e A Chave, através de seu registro jurídico, com co-responsabilidade dos seus membros, e tendo o equipamento a ser adquirido vinculado como garantia física do aval. O advogado respondeu que sim. O Henrique agradeceu e disse que depois falaria mais sobre o assunto com ele. O Joaquim saiu da sala e o Henrique levantou o telefone mais uma vez e ligou para o gerente do Banco de Crédito Real de Minas Gerais SA., com o qual a empresa operava e disse ao gerente que ele estava enviando dois cabeludos ao banco para ele liberar o mais rápido possível um empréstimo no valor de CR$ 200.000,00 (Duzentos mil cruzeiros), que teria aval da C.R. Almeida, e que mais tarde ele mandaria a documentação para ser anexada ao processo. Daí levantou-se da cadeira e disse para nós dois: - “O dinheiro já está liberado junto ao banco. Só passem lá para assinar a promissória inicial com o gerente, que o resto eu resolvo. E espero que esse Rock de vocês faça o sucesso artístico e financeiro que vocês estão esperando, senão eu vou cobrar. E deu uma tremenda risada”. Nos despedimos e assim que saímos da C.R. Almeida eu e o Orlando saímos pulando e gritando pela rua feito dois loucos, pois tínhamos acabado de convencer um dos maiores empresários do Paraná e do Brasil (na época a C.R. Almeida era a terceira empreiteira nacional em tamanho e faturamento) a investir numa banda de Rock. A Chave abriu assim a maior porta de sua existência. Daí corremos para A Casa Branca e, no ensaio à noite, contamos a novidade para os demais membros da banda. Daí o ensaio virou uma tremenda comemoração e começamos a pensar nos preparativos para a viagem a São Paulo, para efetuarmos a aquisição do tão sonhado equipamento e instrumentos, depois de um ano parados na batalha por essa inacreditável conquista. Esse fato foi destaque numa matéria especial sobre a situação das bandas do rock nacional – estrutura e penetração artística - na Revista POP, citando o conteúdo e o resultado desse projeto que A Chave realizou e viabilizou como um exemplo a ser seguido pelos outros grupos. E isso em Curitiba, fora do eixo Rio-São Paulo. É mole? (rs)

Continua...

Fotos: Arquivo pessoal Carlo Augusto Gaertner