Sempre tive uma
predileção pelo blues rock e pelo progressivo desde que comecei a ouvir
rock’n’roll a muitos anos atrás. Conheci a Lótus Aurea via internet pois eu
moro no interior... longe das capitais procurei material no YouTube. Fiquei
muito interessado no trabalho da banda e após alguns contatos resultou na
entrevista que segue abaixo...
2112. A Lótus Áurea surgiu no Pará terra
de muitos ritmos e tradições. Como é montar e manter uma banda fora do eixo
Rio-São Paulo? Pergunto isso levando em conta que só com o advento da internet
tomamos conhecimento maior da cena roqueira brasileira. Acredito que muitos só
conheciam o Stress em termos de rock paraense, não é?
Daniel Avelar. É muito complicado, hoje em dia,
imagina como não seria antigamente, não? Pois é! É complicado uma banda do
norte fazer sucesso no sudeste, assim como é complicado uma banda do Brasil
estourar internacionalmente, mas isso também é algo que é influenciado pelo
estilo musical da banda. Um fato que a gente tem que ter em mente é que apesar
do progressivo não ter mais o apelo popular que tinha na década de 70 o público
dele ainda é um dos mais fiéis que há e o importante, não são presos ao
passado, estão o tempo todo tentando descobrir bandas novas. Isso é incrível
pra renovação do estilo. Temos certeza que o progressivo não morrerá tão cedo.
2112. A cena aí é movimentada?
Daniel Avelar. A cena é bem diversa e cheia de
bandas com materiais gravados, é uma obsessão linda, sabe? Tem bandas de
shoegaze, post rock, nova mpb, rock alternativo, heavy metal, hardcore, rock
psicodélico e obviamente... Rock progressivo. E o interessante é, como você bem
mencionou na pergunta acima, o Pará é cheio de ritmos e tradições e é incrível
como independente do estilo da banda ela sempre assimila um pouco da
regionalidade, seja em algo grande ou nos detalhes minúsculos, como o estilo de
um solo de guitarra ou timbre de um sintetizador.
2112. Quais bandas paraenses vocês
indicariam ou destacariam como sendo bacanas?
Daniel Avelar. Dentro da cena progressiva, a gente
pode destacar duas bandas muito importantes que acompanham a gente nessa onda:
Ultranova e Steamy Frogs. Só sonzeira! Obviamente Belém não é só progressivo,
né? Tem muitas bandas boas de outros estilos, deixo até a divulgação aqui: O
Cinza com uma pegada bem MPB, Joana Marte soando bem éterea e espacial, Móbile
Lunar e Feira Equatorial com uma vibe bem setentista. Ixi... São muitas bandas.
Dava até pra fazer um textão sobre! hahahaha
2112. Vocês citam Pink Floyd, Rush e Dream
Theater com grandes influências da banda. E entre as bandas brasileiras quem
vocês citariam como influências diretas no som da Lótus Áurea?
Daniel Avelar. Obviamente é importante não esquecer
o que de bom a gente tem em casa, até porque o progressivo no Brasil não deve
nada a ninguém. Sobre as influências, se eu falo pra ti: "Eu vou fundar
uma banda de progressivo e vai ser uma mulher cantando!", o que tu vai
lembrar? Com certeza seria de Bacamarte e Mutantes, não? Isso já responde parte
da pergunta! O Tudo foi feito pelo Sol tem um lugar especial no coração da
maioria de nós, assim como o Depois do Fim do Bacamarte, mas vamos mais longe,
pois vale a pena citar o Lar das Maravilhas do Casa das Máquinas. Essas
influências vão amadurecendo dentro de nós e tenho certeza que ficarão mais
audíveis nos nossos próximos trabalhos.
2112. A cena prog brasileira está cada vez
forte e amadurecida levando em conta o surgimento de bandas de vários estados e
lançamentos que nada deve ao mercado gringo. Qual a sua opinião a esse
respeito?
Daniel Avelar. É a tendência das coisas no mundo de
hoje, não? O que a gente vê hoje é uma descentralização dos centros de produção
cultural, em todos os estilos musicais. O nordeste por exemplo, tá vindo com
tudo esses tempos e com artistas de estilos bem diferente. O norte também não
fica atrás, com certeza. Hoje em dia temos estúdios de qualidade, e isso ajuda
muito no processo. A internet contribuiu e muito na divulgação do processo e o
mais interessante, as bandas de prog sempre se ajudam, algo muito bonito de se
ver, apoio não falta. O resultado? A cena é bem diversa, por mais que
localmente falte apoio no Brasil não falta. Irônico, não?
2112. Voltando a banda conte um pouco
sobre a história da criação da Lótus Áurea...
Daniel Avelar. Quando a Lótus surgiu no final de
2015, com outro nome ainda, era só uma brincadeira de amigos, até que o Endi
(nosso guitarrista) sugeriu que a gente tocasse Progressivo. A gente foi
juntando pessoas, chamamos uma vocalista, ela arranjou um baterista e marcamos
nosso primeiro ensaio lá por Maio de 2016, pra mim o verdadeiro começo da
banda. A gente fez nosso primeiro show, foi bem legal e especial. Lá pelo fim
do ano a gente decide gravar um single, Laguna, e durante as gravações a
vocalista decide sair da banda e então a gente tem que dar uma breve pausa.
Meses depois a gente volta com a Marcela nos vocais e tá com ela desde então. A
formação é finalmente fechada em Agosto de 2017 com a entrada do Matheus
Gabriel nos teclados e estamos juntos até hoje, com a formação que lançou o
Principia.
2112. ... e aproveitando o momento
explique o significado do nome da banda!
Daniel Avelar. Lótus Áurea é um significado de
perfeição que o ouro traz e a capacidade de repelir tudo de ruim e a pureza que
a flor de lótus tem. Basicamente trata sobre como a perfeição traz a paz,
compreende e assimila as energias boas do ambiente e afasta as ruins. É um
significado sobre compreensão do ser, o ato de se conhecer mais internamente
entrando em contato com a sua pureza e como ser humano afeta o mundo e como o
mundo afeta ser humano. É uma análise interna que vai ao mundo e retorna ao
nosso íntimo. Tem um significado bonito por trás que se explica mais ainda nas
nossas músicas.
2112. Todos compõem?
Daniel Avelar. Quem compõe as partes instrumentais
são: O Endi (guitarrista), Avelar (baixista) e o Matheus (tecladista). O Avelar
e o Matheus dividem a responsabilidade de fazer as letras nessa fase, Na fase
anterior, que é justamente a do Principia, quem trabalhou na parte das letras
foi o Avelar e a Ingrid, nossa antiga vocalista. O restante dos membros
certamente não estão lá pra enfeite e eles contribuem e muito na parte do
arranjo, o Rafa é sensacional pra isso, tanto na parte da harmonia, quanto na
parte rítmica mesmo, já que ele é o baterista, enquanto a Marcela desenha
melodias vocais belíssimas que por mais que os dois tenham feito a letra,
certos pontos inéditos são pensados por ela. É brilhante como cada um tem sua
função!
2112. Achei muito interessante a temática
do primeiro álbum de vocês, o Princípia baseado na teoria dualista de Platão
com seus dois mundos: o mundo sensível e o mundo das idéias. Como surgiu essa
idéia?
Daniel Avelar. Basicamente essa ideia surgiu com a
segunda faixa do álbum, Uranus. A ideia original dela era abordar todos os
aspectos de um ser na caverna de Platão, desde a assimilação da sua ignorância
até a fuga. Só que uma pergunta foi ficando na nossa cabeça: E o que havia
antes? O que há depois? A gente já tinha algumas músicas do álbum compostas e
nem nós tocamos que elas já contavam a história de um personagem
2112. A temática é complexa e instigante
pois leva o ouvinte a questionar o mundo que vive e a si mesmo. Isso é
fabuloso!
Daniel Avelar. Com certeza, né? É a função da arte
levar a pessoa a questionar tudo ao redor dela, inclusive ela mesmo. Há vários
jeitos de morrer e quando a gente para de se perguntar sobre o porquê das
coisas a gente morre nas ideias e isso igualmente triste. Independente da idade
da pessoa sempre há algo novo pra se aprender. O importante é nunca se fechar
pro conhecimento.
2112. Além dos temas filosóficos o que
mais influenciam vocês na hora de compor material pros álbuns da banda?
Daniel Avelar. O ponto importante sobre a filosofia
não é só o que se estuda e sim como o conhecimento é aplicado no mundo em que a
gente vive, além disso é importante ressaltar que assim como nós imprimimos
conhecimento no mundo ele também imprime conhecimento em nós, através da
vivência do dia-a-dia e análise de tudo que nos rodeia. É importante analisar o
mundo e entender toda a complexidade dele, a grande sacada do artista é se
desprender do seu ego, enquanto "o fazedor da arte", e notar que ele
é apenas um canal que a música utiliza para poder se expressar de uma forma
única e trazer o conhecimento do cotidiano à vida das pessoas de uma forma que
as vezes não é clara a elas ou sequer foi pensada. É algo lindo.
2112. Levando em conta o conteúdo das
letras da banda quero levantar um questionamento. Vocês concordam quando dizem
que brasileiro não é adepto da leitura?
Daniel Avelar. Essa análise não é nada simples, mas
vamos lá... Os tempos que a gente vive hoje são muitos corridos, as pessoas se
cansam de ler coisas longas, ainda mais se for de interesses conflitantes,
então elas preferem algo mais mastigado e é justamente nesse ponto que surge
uma grande brecha pra desinformação e leituras enviesadas e isso é um problema
que ocorre em grande parte do mundo. Agora se tratando de Brasil, o problema é
que o brasileiro além de ser afetado pela falta de interesse em leituras de
fontes diferentes, ainda não consegue interpretar com clareza o que lê.
Independente da posição política, falta sede de conhecimento e senso crítico.
2112. Não seria o alto valor dos livros
que desanima o leitor?
Daniel Avelar. Mas isso não é desculpa. Hoje em dia
o momento é outro, dá pra ler PDF no celular, no PC. Se o caso for notícias, dá
pra se informar na internet... Ah, não tem desculpa pra falta de conhecimento
quando a pessoa tem todos os meios necessários pra isso. O problema do Brasil é
bem maior do que o preço dos livros, é um problema educacional e social que vai
bem mais além disso. É histórico, com uma elite oligárquica, porém ignorante, a
menos que isso envolva algum interesse egoísta dos mesmos e com uma parte do
povo segregada desses privilégios e que por isso desconhece sua própria
história. Pra alcançar uma sociedade melhor temos que garantir oportunidades
iguais e isso se vem com educação pra todos. É preciso uma mudança de
consciência e uma mudança social. Isso não se muda rapidamente. Pode parecer
que eu fugi do assunto, mas não é isso não. O conhecimento vem através da
leitura e da vivência, vivência eu te garanto que o pobre tem muito, mas falta
educação de qualidade e isso é um problema estrutural, e aqueles que tem acesso
algumas vezes optam pela ignorância mesmo assim. O Brasil é um país cheio de
diferenças e com pessoas de todos os tipos, cada modelo tem sua história e por
trás de cada um deles, fatos históricos que embasam as ações dos mesmos hoje em
dia. São tantos pontos a serem analisados... Se fosse fácil, não haveriam
centenas de estudos sobre as múltiplas contradições sociais que temos hoje e
como isso influencia no conhecimento do brasileiro. Eu disse na pergunta
anterior que não era uma análise simples, viu como ela se estendeu até aqui?
2112. Quem produziu e fez os arranjos do
álbum?
Daniel Avelar. Os arranjos do álbum são feitos por
todos nós. A gente as vezes passa vários ensaios discutindo sobre qual arranjo
soa melhor pra tal parte, pode parecer estressante, mas é divertido, aí
geralmente no próximo alguém chega com uma ideia diferente pra sua linha ou até
mesmo pra linha do companheiro e assim vai funcionando, afinal todo mundo tem
voz. Sobre a produção do álbum, os timbres de guitarra foram modelados pelo
nosso guitarrista mesmo (o Endi) e o resto (Gravação, mix e master) foi com o
nosso baixista (Avelar), desde timbre de baixo, bateria, até teclado mesmo, mas
a gente também não pode deixar de mencionar o nosso amigo (AMIGO MESMO!) Thiago
Albuquerque (da Ultranova) que mixou e masterizou 3 músicas do álbum. Além de
mixar 3 músicas (Uranus, Jornada e Ágape) ele foi o responsável por gravar
todas as baterias e vocais em todas as músicas, enquanto o resto dos
instrumentos foi gravado no nosso home-studio. Mesmo nas outras 4 que foram
gravadas e produzidas pelo nosso baixista, o Thiago ainda teve uma participação
forte, pois ele sempre contribuia com opiniões e auxílios. Viu como a união faz
a força? hahaha
2112. Vocês fazem parte do comitê
organizador do evento Noite Progressiva. Esse evento é somente para as bandas
locais ou tem a participação de bandas de fora também?
Daniel Avelar. Por enquanto só bandas locais, mas
com certeza a ideia é expandir e trazer bandas de fora pra visitar nossa terra
e encantar nosso público. Seria bem diferente, não? Já imaginou Caravela
Escarlate em Belém? Seria ótimo. Longe de nós estarmos sugerindo algo...
2112. Além do Noite Progressiva que outros
eventos vocês tem a disposição para tocar?
Daniel Avelar. A gente sempre toca em eventos que
convidam a gente, sejam nossos amigos ou gente que gosta do nosso trabalho. No
quesito de organizar eventos, no momento, além do Noite Progressiva a gente tem
o festival Alma Livre que vai ter sua segunda edição em Janeiro e também
organiza o Não Pire, festival famoso na cena de Icoaraci (Distrito de Belém).
Oportunidade, seja criada por nós ou sendo convidados, não falta.
2112. O Lótus Áurea sempre valorizou a sua
“independência” seja nas organizações dos eventos, nas gravações ou
distribuição dos produtos da banda. O que é ser independente para vocês?
Daniel Avelar. Independente é dar valor a fazer as
coisas com o próprio esforço e correr atrás das coisas, pois elas não caem do
céu, mas também trata-se de liberdade. Quando se tem controle das etapas do
processo a gente pode inovar, fazer diferente e ir aonde outras pessoas ainda
não foram, sem falar que assim ainda podemos contar com a ajuda dos nossos
amigos. Não vale dizer que é fácil, pois é complicado lidar com tanta coisa,
mas entre esperar alguém aparecer com um contrato na mão e fazer as coisas, a
gente prefere fazer as coisas necessárias e botar a mão na massa.
2112. Antes do primeiro álbum vocês
lançaram os singles Laguna e Ágape. Conte um pouco sobre as gravações desses
dois trabalhos...
Daniel Avelar. Laguna foi um marco na nossa
história, porque foi nosso primeiro single. Cara... A gente tava tão ansioso,
sabe? Quem produziu Laguna foi inteiramente o Thiago. A gente gravou todo o
instrumental numa tarde, sendo que a gente tinha ido com a pretensão de gravar
só a bateria! Apesar de ter treinado tudo direitinho antes, a gente sofreu um
pouco por falta de experiência em estúdio, mas acabou que a gente gravou uma
música de 10 minutos em menos de 4 horas. Pô, pra uma banda iniciante, isso tá
muito bom, cara! Sobre Ágape, ela já foi um pouco mais diferente. Por incrível
que pareça, a versão do baixo que tá na faixa foi a primeira que a gente gravou
e ficou logo, acho que ela foi gravada em take único ou dois, no máximo. Aí a
gente gravou a guitarra e o teclado em um outro dia e depois foi gravar a
bateria e vocal. Ágape tem um coro no segundo refrão, nele a gente chamou um
monte de gente das bandas daqui da cena e mandou ver. Ficou tão bonito de se
ouvir!
2112. Vocês já tem projeto de um novo
trabalho? Dá para adiantar alguma coisa?
Daniel Avelar. Com certeza a gente pode sim, mas só
um pouco! Hahaha A gente pretende começar a gravar o segundo álbum no ano que
vem, vamos bem devagar em relação ao outro, ou seja, vamos por partes. A equipe
de produção vai ser a mesma, com a inserção de mais um membro de um outro
estúdio. A gente quer resultados melhores e com certeza temos tudo pra
conseguir. Sobre a abordagem do álbum, ele vai ser uma continuação do
Principia, a primeira música continuará exatamente de onde Laguna para.
2112. Afinal... O que você prefere? Uma
felicidade irreal e simulada ou uma vida com perigos reais, porém
verdadeira? O que você está esperando
para deixar a música te guiar uma jornada de auto conhecimento?
Daniel Avelar. Essa frase tem um peso, não? Recai
muito sobre a ideia de permanecer na nossa zona de conforto e viver ali pra
sempre ou sair e finalmente conhecer a vida, saber como ela dói, mas ela pode
ser bela através do aprendizado que essas dores trazem. Há vários meios de tu
finalmente se ver no mundo real, seja o contato com teus amigos, seja tua
consciência social e também a arte. A Lótus apresenta um dos meios pra
libertação do teu ser e pro quão bom o autoconhecimento pode ser.
2112. O microfone é de vocês...
Daniel Avelar. Queremos primeiramente agradecer o
espaço que o 2112 cedeu a nós, é muito gratificante sermos ouvidos. Peço também
para que notem com carinho o movimento progressivo que tá surgindo e se
fortalecendo mais ainda na região Norte, a história se escreve bem na frente
dos nossos olhos e a gente não pode deixar passar! É lindo ver como as bandas
se unem, como o público se une e como até mesmo a imprensa especializada no
meio se une pra ajudar as novas bandas. Obrigado a todos que nos ajudaram até
aqui, conquistamos muito, mas conquistaremos mais com a ajuda de todos.
Próxima entrevista: Jefferson Gonçalves (dia 20)