É maravilhoso quando se consegue
realizar grandes sonhos em sua vida... e que de alguma maneira repercute na
vida de outras pessoas. Esta entrevista é uma delas assim como foi com o Made
In Brazil, China Lee, Tibet, Beto Guedes, Marcos Valle entre muitos outros.
Nuno Mindelis é um dos percursores do blues em nosso país numa época que pouco
se falava sobre isso: blues brasileiro! Foi uma grande honra entrevistar um dos
meus ídolos que é considerado um dos maiores guitarristas do mundo. Yeah!!
2112. A sua história com a música
começou aos 5 anos de idade ainda em Angola... Você tem idéia do que você ouviu
ao ponto de desejar ser músico? Os seus pais eram também eram músicos ou na sua
casa ouvia-se muito música?
Nuno Mindelis. Ninguém era músico na família. Zero. Ouvia-se
bastante música clássica e francesa, meus pais eram da leitura, da música, do
Teatro etc. Gostavam muito, além dos clássicos (Beethoven, Mozart, etc.) de
Gibert Bécaud, Georges Brassens e outros. Não sei qual foi o estímulo,
mas além desse, provavelmente o começo do rock ’n roll e da guitarra rock,
que foi meio naquela época, um pouquinho só antes de eu nascer. E quando
tinha uns 5 ou 6 anos surgiram Beatles com força. Chegou um compacto com Hey
Jude lado A e Revolution Lado B. Pode ter sido tudo isso, mas ainda acredito
que possa também ser genético. Da mesma forma que saí tocando sem ninguém me
ensinar, saí desenhando, escrevendo e outras coisas.
2112. É verdade que você aos 9
anos já confeccionava seus próprios instrumentos?
Nuno Mindelis. Sim, (na verdade antes dos nove,
aos nove ganhei violão de verdade) eu aprendi com os meus coleguinhas
nativos. Numa lata de azeite de 5 litros fazia um buraco como aqueles dos
violões, adaptava um pedaço de madeira como escala e usava fios de nylon de
pesca como cordas. Tenho uma réplica mais ou menos recente de um desses, ainda
os fazem por lá.
2112. Os seus pais o
incentivava?
Nuno Mindelis. Eu diria que eles talvez se
espantassem mais do que incentivassem. Mas deles ganhei o primeiro violão
de verdade, aos 9 anos. A escola, o curso superior etc. eram sempre mais
incentivados, de forma obsessiva até. Mas os professores (apesar de muito bons
tecnicamente) eram uma lástima do ponto de vista pedagógico. Eu simplesmente
não tinha interesse naquilo. Apesar disso, a ‘síndrome do fracasso’ fica
tão impregnada que me formei em Direito.
2112. Que impacto causou o blues
na sua vida? Foi amor à primeira vista?
Nuno Mindelis. Pode-se dizer que sim. Já
ouvia um monte de coisa (Otis redding, Beatles, Shadows, etc.) quando ouvi B.B.
King e Big Bill Broonzy aos 10 anos nunca mais fui o mesmo.
2112. Em 1975 sua família
mudou-se para o Canadá e lá você formou uma banda de blues e participou também
de várias jams nos clubes locais. Deve ter sido um período de grande
aprendizado, não é?
Nuno Mindelis. Parte da família, meu pai não
foi. Sim, sem dúvida, na questão do aprendizado. Mas mais aprendizado
ainda foi assistir de perto os meus heróis, verdadeiros Deuses inalcançáveis
cujos LPs tinha em África, de repente ali, bem na minha frente, dava para pedir
música. Aos 17 vi Willie Dixon com banda da Chess Records e Roy Buchanan na
guitarra, por exemplo.
2112. Nestas idas aos clubes você
chegou a tocar com algum grande bluesmam?
Nuno Mindelis. Não naquela época. Tinha só 17
anos e era o começo de um longo exílio. Mas raspei uns caras em canjas que hoje
são artistas consagrados.
2112. Um ano depois você já
estava morando em terras brazillis... Até o lançamento de Blues &
Derivados o que você fez neste período?
Nuno Mindelis. Fiquei tentando sobreviver,
redesenhando a minha vida, tinha perdido tudo na guerra civil, trabalhando em
emprego regular, batente durante o dia todo, terminando faculdade à noite,
alguma gig de noite aqui e ali também e nos fins de semana, 3 filhos para
alimentar etc.
2112. 1990 marca o lançamento do seu
primeiro trabalho o “Blues & Derivados” pelo selo Eldorado. Como surgiu a
proposta?
Nuno Mindelis. Blues & Derivados não foi na
verdade selo Eldorado. E foi acho que em 1987 ou 88. Saiu por um
estúdio/gravadora independente (Origem) que fez uma parceria com a Brasil
2000 (rádio). O que acontece é que a rádio Eldorado tocou muito esse disco,
tinha uma versão blues para uma música do Caetano que eles piraram.
- Informação incluída na discografia do guitarrista na Wikipédia: Blues e Derivados (1989) em formato LP vinil pelo selo Eldorado.
2112. Você já tinha material autoral
suficiente ou também incluiu releituras de clássicos?
Nuno Mindelis. Coloquei somente um
clássico, I put a Spell on You, de Screaming Jay Hopkins, mas
porque gosto da música, não porque faltasse material.
2112. O que mais o inspira na
hora de compor?
Nuno Mindelis. Atualmente, para ser franco,
pouca coisa. Talvez somente o próprio blues seja o motor.
2112. 1992 foi um ano fecundo com a sua
participação em vários festivais de blues e também do lançamento do álbum Long
Distance, certo?
Nuno Mindelis. De fato. Ali acharam que eu era a
melhor coisa depois da descoberta da mortadela, então era chamado para tudo, aparecia
o tempo todo na TV, jornais, rádios. Mas foi preciso muito suor e anos de
trabalho para (e que a revista Veja e a Radio Brasil 2000 revelassem que valia
a pena) para os festivais acreditarem e chamarem.
2112. Me responda uma coisa...
por que este álbum foi relançado em 1988 como Nuno Mindelis & The Cream
Crackers? Algum problemas contratual?
Nuno Mindelis. Boa pergunta, por que foi
relançado sem eu ser consultado, com capa diferente, nome diferente, sequência
diferente, tudo diferente mas a mesma coisa? (tive amigos que compraram e
descobriram que já tinham, era o mesmo álbum). Essa aberração é cometida pela
gravadora que não tem respeito pelo artista e nem o consulta sobre o assunto.
Recentemente estão fazendo o mesmo com os fonogramas, publicaram nas
plataformas digitais sem me avisar e sequer ajustar royalties. Descobri por
acaso, assim como o relançamento desse disco.
2112. Seus esforços foram
recompensados ao ser eleito pela revista Guitar Player em 1994 como o melhor
guitarrista internacional de blues. O que isto significou para você? O prêmio
te abriu muitas portas?
Nuno Mindelis. Foi em 1998 o prêmio. Antes (acho
que em 1992) foi um spotlight (destaque) feito pelo editor da revista, que
comparou a Jimmy Page. Sobre o prêmio, não sei se abriu tantas portas assim, as
maiores portas foram provavelmente da autoconfiança. Apesar disso, numa época
em que não havia distribuição digital, comecei a receber cartas dos EUA e da
Europa sobre o fato. Foi uma grande vitrine e trata-se da Bíblia mundial da
guitarra.
2112. Você é tipo que ouve apenas
blues ou gosta de tudo um pouco?
Nuno Mindelis. Eu sou o tipo que se bobear gosta
mais de outras coisas até mais do que de blues. Blues para mim não é gosto, é
religião e abecedário, é outra coisa. Ouço muito pouco, aliás. E quando ouço,
prefiro milhares de vezes os meus heróis, John Lee Hooker, Jimmy Reed, etc. Eu
gosto muito de muitas outras coisas, seja na música ou em qualquer área. Eu
ouço muito mais Keith Jarret e Bob Dylan do que blues, por exemplo. E gosto de
bandas novas boas também, inglesas (e algumas americanas como Alabama Shakes,
Foo Fighters etc.). Falando em Alabama, eu gosto muito de Alabama3, que faz
blues com eletrônica. Gosto de Marisa Monte, Zé Ramalho, de Nick Drake, Alex
Murdoch, etc.etc.
2112. Particularmente acho que todos os
músicos deveriam ouvir vários segmentos musicais para criarem um estilo próprio
e mesmo apreciar a música por diferentes ângulos. Achei muito interessante o
grupo Sepultura ter incluído material étnico em Roots pois deu novas
possibilidades para o heavy metal que é uma vertente muito fechada, não
é?
Nuno Mindelis. Sem dúvida nenhuma. Sou favorável
a misturas, sou aliás bastante irrequieto com isso. O meu último disco de blues
elétrico em formato tradicional é de 2003. Depois disso só fiz experiências,
com eletrônica e outros elementos, em português, poesia, etc. Fiz um disco
chamado Free Blues que exatamente pegava os clássicos que fizeram a minha
cabeça quando criança e os relia com elementos novos, eletrônica, hip hop, etc.
RL Burnside lançou pelo menos dois discos assim dos quais gosto muito.
2112. E mesmo você ao aproximar o
blues do samba, da tecnologia usando baterias eletrônicas em um dos seus
álbuns e mesmo a inclusão de DJ’s em seus shows. Porque devemos ser tão fiéis
diante de infinitas possibilidades, não é mesmo?
Nuno Mindelis. Acho que a linguagem pura serve
para você aprender as regras. Depois de conhecê-las bem, deve quebrá-las, de
preferência. Mas atenção , repito: depois de as conhecer bem, senão é chute sem
valor artístico. Em palavras mais simples: antes de pintar abstrações, deve ser
capaz de pintar paisagens e/ou desenhar retratos decentemente. Por aí.
2112. Os mais puristas reclamaram muito
com você?
Nuno Mindelis. Na verdade não. Talvez quem não
compreendeu a proposta tenha deixado de ouvir sem reclamar. Mas conheço pelo
menos três super puristas que acham Free Blues o melhor caminho e me pedem para
continuar nele, inclusive. (puristas de rádios e produções nos EUA, que são
mais radicais em geral, até).
2112. ... mas o risco foi
positivo?
Nuno Mindelis. Sempre é positivo. Mesmo que não
pareça na época em que se faz. Sempre é preciso risco na arte e na vida.
Eu faço as coisas por elas próprias, faço para mim. O que credencia é o tempo e
a sinceridade da obra. As pessoas em geral só compreendem as coisas muito tempo
depois, se elas estiverem por aí podem acabar sendo descobertas, como pepitas.
Senão, não, mas você fez a coisa certa.
2112. Em conversa com Álvaro
Assmar falei do meu desejo em ouvir um disco tributo ao Cartola com suas
músicas vertidas para o blues. Não seria algo inusitado e interessante?
Nuno Mindelis. Poderia ser, claro. Mas quem
fizesse teria que saber bem as regras, senão ficaria estereotipado.
2112. Numa resenha de um box
sobre o compositor Cartola fui rechaçado ao dizer que suas composições eram tão
intensas e viscerais quanto as do bluesman Robert Johnson. E eu fiquei me
perguntando o que os faziam diferentes. A música? A etnia? Vejo que o que os
une é muito mais forte que é o racismo que eles vivenciaram e o próprio amor
que ainda é matéria prima para o blues e o próprio samba de
raiz.
Nuno Mindelis. Eu sempre uso esse tipo de
comparação, caras como Pixinguinha etc. me parecem o equivalente dos bluesman
do Mississipi, em legitimidade e talento. Nada para ser rechaçado, você está
certo nisso.
2112. Regis Tadeu escreveu certa vez
que você é “um dos maiores representantes do blues da América do Sul
(...) um compositor de mão cheia" e um "excelente guitarrista.” Isso
mexe com seu ego ou você é do tipo que continua seguindo em frente?
Nuno Mindelis. A única coisa que isso mexe em
mim é no carinho pelo Regis, aos 30 anos talvez isso mexesse no ego, agora não
chega perto.
2112. Em suas viagens para tocar
em festivais ou apresentações próprias você fica atento ao que está acontecendo
com o cenário do blues. Na sua opinião ele cresceu nos últimos
anos?
Nuno Mindelis. Não tão atento, vai parecer
arrogante mas é sincero, é difícil me surpreender depois deste tempo todo (até
com gringos no blues contemporâneo, que praticamente não ouço). Apesar disso,
sei que há talentos muito grandes no blues nacional, ele cresceu muito,
especializou-se bastante. O blues contamina, mesmo não estando na mídia,
há sempre um moleque querendo aprender a tocar gaita no Arroio e outro
dedilhando com bottleneck no Chuí.
2112. Quem você destacaria
atualmente?
Nuno Mindelis. Diria que Fred Sunwalk é um
guitarrista de primeiríssima. Como dizem os americanos, alguns têm “the
thing”, outros tocam bem mas não têm. “The thing’ muda tudo, emociona,
impressiona, move, empurra, etc...
2112. Bandas principiantes o
procura para que avaliem seus trabalhos? Tem muita coisa bacana acontecendo sem
o conhecimento do público?
Nuno Mindelis. A vida inteira recebo material de
bandas e mais bandas. Umas gosto, outras nem tanto.
2112. Meu primeiro entrevistado foi o
guitarrista Igor Prado. Acho o seu trabalho bem interessante e diversificado ao
trazer elementos do soul, do funk, do boogie, do rthythm & blues e claro do
próprio blues que é a base do seu trabalho. Isso o leva a interagir com
variadas plateias além de dar a ele condições para experimentar constantemente,
não
é?
Nuno Mindelis. Costumo chamar isso de erudição.
Não basta gostar de Stevie Ray Vaughan, sair copiando e achar que já foi.
Ninguém pode ser completo e transcender se não tiver na bagagem milhares de
horas e audição de todos os mestres em todos o gêneros possíveis. Não existe
blues sem Gospel (o de verdade) ou spirituals, não existe electric blues sem
delta Blues e sem soul, não existem Jazz, rock, country ou folk sem blues ou
sem soul. A música americana (chamada justamente de ‘Americana” pelos próprios
americanos), é um DNA completo, é mais vasto do que somente um gênero ou outro.
É como aprender samba sem aprender bossa ou coisa parecida. Igor acompanha
artistas de fora, só por isso já ampliou o vocabulário.
2112. Isso muito me faz lembrar
do Robert Cray e sua música...
Nuno Mindelis. Robert Cray é Blues e Soul. Com
pitadas de Pop, na fase inicial. Foi uma boa fórmula, na minha opinião, embora
eu só ouça quando toca em algum rádio que deixei ligado.
2112. Você poderia falar um pouco
sobre os álbuns Outros Nunes e Free Blues?
Nuno Mindelis. Acabei falando um pouco sobre
eles antes. Free Blues visava responder à pergunta de uma criança do século 21:
o que é blues? Bom, vamos responder com um pouco de atualização de
linguagem e de forma mais palatável, esse foi o mote, digamos. Afinal,
quando eu era menino e ouvi John Mayall & The Bluesbreakers aquilo já era
blues com injeção de eletricidade e de rock. Stones também! Não era o blues
tradicional de Skip James, Son House ou Robert Johnson. E essa mistura
arrebatou gerações e mais gerações, que acabaram conhecendo (e se apaixonando
por) blues do qual nem tinham ouvido falar. Portanto imaginei que para as
gerações século 21 a injeção deveria ser de eletrônica e rap, trance,
coisas assim. Sem perder a magia do blues. Se deu certo para mim e para
tanta gente, por que não daria para a molecada de então? (foi em 2010) . Outros
Nunos era um pouco isso também, mas tinha menos foco no blues em si (embora
tudo que eu encoste vire blues) e mais na questão de eu precisar ‘vomitar’
todos os textos em português que escrevo desde sempre, que ficam em baús e mais
baús, gavetas e mais gavetas, guardanapos e mais guardanapos. Tem letra
ali que escrevi com 17 anos (Rei dos Animais, por exemplo).
2112. A última vez que ouvi falar
de um disco seu foi em 2013 quando comprei o Angels & Clowns com a
participação da The Duke Robillard Band. Como surgiu essa
parceria?
Nuno Mindelis. Obrigado por ter adquirido o
disco. O selo Duchess Blue é de Duke e de um grande fan meu de muitos anos,
americano. Um dia encontrei os dois numa cerimônia do Memphis Blues Awards e
papo vai papo vem um tempo depois, relembrando daquele dia etc. veio a idéia de
fazer um disco pelo selo deles. Era para ser um disco de Blues mas acabei
fazendo Angels & Clowns que não é blues na forma tradicional. (taí um
indício inequívoco da questão que vc colocou sobre a necessidade de
diversidade musical, bagagem, fusões etc..Angels tem um pouco de tudo o
que ouvi, Soul de Booket T e Otis, Rock de Jimi, Pink Floyd , Stones ,
etc.etc.etc.)
2112. Quando teremos um novo
trabalho seu?
Nuno Mindelis. Estou pensando se vale a pena.
Parece que agora é preciso que a letra tenha palavões, sexo explícito e as
melodias sejam retardadas para lançar algo. Não consegui ainda retroceder
nessa área, estou tentando.
2112. Bem falado... aproveito
para agradecer sua disponibilidade em dar esta entrevista e mesmo pela
paciência em responder. O microfone é todo seu...
Nuno Mindelis. Muito grato pela
atenção e consideração. Um prazer.
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