O Brasil sempre teve
uma profunda ligação com o rock progressivo e várias foram as bandas que se
deixaram influenciar por sua rica musicalidade. Poderíamos citar muitas delas
como Os Mutantes, Veludo, O Som Nosso de Cada Dia, Casa das Máquinas, Módulo
Mil... entre tantas outras que fizeram história no rock brazuca. E agora
trazemos para vocês essa entrevista com a banda Caravela Escarlate que já
lançou dois ótimos trabalhos.
2112. Nos últimos anos temos visto o
renascimento do progressivo com o retorno de várias bandas clássicas e mesmo
com o surgimento de inúmeras bandas novas. O cenário prog tem se mostrado bem
forte e consistente, não é?
Ronaldo. Sim. Esta década está sendo
bastante prolífica, tanto no surgimento de novas bandas quanto na manutenção ou
na retomada das atividades de bandas de outras épocas. Aqui no Brasil,
particularmente, muitos músicos que passaram pelo estilo estão novamente
demonstrando seu interesse neste tipo de música, fazendo novos trabalhos com
essa influência e/ou recolocando suas trupes nos palcos e estúdios.
2112. Pergunto isso me baseando no sucesso
que foi o Totem Prog que inclusive vocês participaram. Foi um saldo bem
positivo não?
David. Foi sim muito positivo, até mesmo
porque foi a primeira vez que tocamos em São Paulo. Além da receptividade do
público paulista e a importância que o Totem Prog tem para o movimento
progressivo.
Ronaldo. Ali podemos ver que apesar de ainda
lidarmos com um universo pequeno de admiradores, o que acontece ao redor do
rock progressivo atualmente é bem consistente. Shows e lançamentos de muita
qualidade tem acontecido com frequência em vários lugares.
2112. Foi maravilhoso ver bandas de várias
épocas se confraternizando com um público que estava ávido por um evento desse
porte. O que mais te emocionou?
David. O que mais me emocionou foi ter a
oportunidade de dividir o palco com quatro bandas que eu gosto muito,
principalmente o Terreno Baldio e o Som Nosso de Cada Dia, que acompanho desde
minha adolescência, fora o orgulho de sermos prestigiados por uma platéia
maravilhosa.
2112. No final dos anos 70 com o avanço do
punk rock o movimento precisou se reinventar abrindo mão das grandes suítes e
incluir elementos comerciais para sobreviver aos novos tempos. Na sua opinião
esta decisão foi a mais acertada naquele momento ou as bandas se precipitaram?
Élcio. Acho um pouco complicado responder
isso agora porque minha cabeça mudou muito. Hoje em dia sou mais radical quanto
a isso, acho que o trabalho tem que manter sua identidade sem pensar
necessariamente em fazer sucesso, ainda mais atualmente onde está tudo mais
"descartável". Essa inserção de elementos comercias não garantiu a
sobrevivência das bandas e ainda acabou deixando os fãs decepcionados. Foi um
tiro no pé, a meu ver.
2112. Outra polêmica que sempre envolveu o
movimento é que muitos críticos sempre viram o prog como uma “musica elitista”.
O que você pensa sobre isso?
Élcio. Na verdade nunca pensei que o prog
seria "elitista". Poderia dizer que algumas bandas não eram populares
por conta das músicas realmente difíceis e cerebrais como King Crimson e
outras. Já Genesis, Yes, Jethro Tull, Focus e até mesmo ELP tiveram muito
sucesso na época e mega shows pelo mundo todo!
2112. A Caravela Escarlate surgiu no
início dos anos 90 com a intenção de unir o rock progressivo, a música
experimental e também a MPB dos anos 70. O que necessariamente você tinha em
mente ao criar este projeto?
David. Exatamente isso: unir o Rock
Progressivo, música experimental, MPB dos anos 70, mais alguns estilos
brasileiros e do exterior passeando por várias épocas.
2112. Digo isso levando em conta que
múltiplas influências geram múltiplos caminhos...
Ronaldo. Isto é a própria essência do rock progressivo e é de
onde tentamos partir. Se pegarmos o som do Yes e dissecá-lo, podemos ver que há
uma variedade de influências implícitas que nenhuma outra vertente do rock
ousou ter – há elementos de música sinfônica, jazz das big bands, country, folk
europeu, rock americano, música concreta...No nosso caso, uma variedade enorme
de sons diferentes pode ser um bom ponto de partida e o é que tentamos imprimir
nas nossas composições.
2112. Sempre achei interessante o modo
como o Led Zeppelin, o Rush e o Jethro Tull trabalhavam suas influências para
criarem um som próprio. Como você trabalha as suas influências sem que isso
gere comentários sarcásticos do tipo: “já ouvi isso antes...” ou “esse som se parece
com...”.
Élcio. Nunca pensei isso de forma
consciente, deixo as influências virem de forma natural; se isso gerar
comentários desse tipo realmente eu não me importo, quero tocar e ser feliz com
isso.
2112. Na sua opinião ainda é possível ser
original nos dias de hoje?
Ronaldo. A roda já foi inventada. Mas há
muitos caminhos possíveis, muitos intercruzamentos que ainda não foram tentados
e muitos “fios soltos” nessa grande massa de sons chamada de rock progressivo.
Nossa experiência como ouvintes e colecionadores de discos nos ajuda muito
nesse sentido; não estamos fechados a 3 ou 4 influências apenas, o que nos
ajuda muito a perceber esses caminhos. Trilhamos um caminho que já foi
desbravado por músicos geniais; então, absorvemos muito o que vem deles, mas
creio que seja possível desenvolver ao menos uma assinatura própria bem
consistente.
2112. Outro ponto interessante é você
citar entre as suas influências a MPB dos anos 70 que a meu ver foi uma das
melhores épocas da música popular brasileira. Quem você citaria como sendo uma
influência marcante?
David. O Clube da Esquina me serviu como
uma grande escola, algo que me influenciou bastante.
2112. Como surgiu a parceria entre você e
Ronaldo Rodrigues, ex-Módulo Mil?
David. Uma vez, saindo do trabalho no Centro do Rio de
Janeiro, encontrei com o produtor Cláudio Fonzi caminhando na mesma calçada,
amigo que eu já não via algum tempo. Papeamos um bocado e no meio desse
bate-papo expus pra ele que queria muito voltar com a banda; aí ele comentou
que tinha um tecladista de São Paulo recém chegado ao Rio de Janeiro e que iria
apresenta-lo para mim. Ronaldo me ligou, nos encontrarmos e assim teve início a
nossa parceria.
Ronaldo. Ressalto que meu convite pra
integrar a última formação do Módulo 1000 surgiu depois que eu já era da
Caravela Escarlate.
2112. Em 2016 vocês lançaram em duo o cd
Rascunho explorando mais o lado acústico e eletro-acústico da banda. Vocês
gastaram muito tempo em estúdio?
Ronaldo. Foi tudo bem rápido. Da banda eu sou
o único que não vive exclusivamente de música. Estava concluindo uma
pós-graduação e estávamos meio que em uma “ressaca” após ter tentado gravar um
álbum no ano anterior e o processo ter sido abortado pela saída do então
baterista. Trabalhar aquelas composições (que integrariam o “Rascunho”) e os
arranjos para elas foi uma oxigenação muito grande para nós, apesar de tudo ter
sido feito em apenas 3, 4 meses. Não me recordo ao certo quantas sessões foram
necessárias, mas foi um trabalho feito de forma fracionada, um processo de
gravação bem expresso, mas que se mostrou uma alavanca enorme para o nosso
desenvolvimento. Nesse ínterim, o Elcio passou a integrar a banda e concluiu
essa guinada rumo ao ponto que estamos hoje.
2112. Das músicas gravadas qual foi mais
emblemática na hora de gravar?
Ronaldo. Esse tipo de pergunta é quase como
perguntar para uma mãe qual é o filho favorito (risos). Me lembro que o solo de
teclado em “De Sol a Sol” foi um improviso que aconteceu na hora e alguns
trechos de “Pedra do Sal” também. Gosto quando isso acontece e algo feito sem
pensar se torna indispensável para a música.
David. Todas de certa maneira foram
emblemáticas na hora de gravar, até mesmo porque fizemos as gravações das bases
em tempo real para o segundo disco, mas por sempre ensaiarmos a “Planeta
Estrela” de forma diferente, acabou sendo minha preferida.
2112. Eu sei que não existe uma regra
específica para compor uma música ou mesmo escrever um livro. Mas quando você
está compondo qual o seu sistema de trabalho: letra e música, música e letra ou
vai de acordo com o dia e a hora?
David. O sistema na verdade funciona mais
ou menos de acordo com a minha inspiração, uma coisa muito natural e sem muitas
regras. Às vezes estou mais para música, às vezes estou mais para letra e às
vezes sai música e letra no mesmo momento.
2112. O que mais te inspira: livros,
silêncio, a rotina do dia a dia, ouvir música...
David. Muitas coisas me inspiram, mas o
carro-chefe das inspirações vem das mulheres bonitas e de ouvir música!
2112. Ano passado vocês lançaram um novo
álbum que leva apenas o nome da banda mas que traz em seu conteúdo um material
valioso. O que levou vocês a redimensionarem a música da banda? Estar em
constante mutação é o que mantém a Caravela Escarlate viva?
Ronaldo. Isso é algo curioso na nossa
trajetória, porque na verdade nosso segundo disco era para ter sido o primeiro.
Como disse na pergunta anterior, em 2015 tentamos gravar essas mesmas músicas
com outra formação e essa já era nosso repertório desde quando começamos a
trabalhar juntos, eu e David, em 2011. Inclusive, com outra formação anterior
entre 2013-2014 também havíamos tentado gravar. Por conta desses obstáculos, de
não ter um line-up consistente e estabilizado na banda, é que decidimos
trabalhar outras músicas que já tínhamos em mão, para que saíssemos da estaca
zero. Gravar um álbum sempre foi um objetivo principal entre nós e fizemos com
as armas que tínhamos na mão (em duo, mesmo). Mas independentemente disso, ter
dois álbuns bem distintos entre si reflete o quanto somos ecléticos e o quanto
a gente pensa ser capaz de colocar tantas coisas diferentes no mesmo balaio. É
uma coisa desafiadora, uma mola propulsora, algo que sempre nos anima.
2112. Qual era a reação do público nos
shows quando vocês tocavam o material deste cd?
Élcio. Tem sido muito positiva e
emocionante, uma linda surpresa!
2112. Soube que este trabalho vai ser
lançado primeiramente na Europa e depois no resto do mundo. Isso gera muita
expectativa, não é?
Ronaldo. Sim! É algo incrível que tem
acontecido conosco, inédito até eu diria nos dias de hoje e tendo em vista o
tipo de música que fazemos, especialmente pela forma como conseguimos essa
oportunidade. Imaginamos que isso nos abrirá muitas portas.
2112. O cd lançado no exterior terá a
inclusão de alguma faixa bônus?
Ronaldo. Em princípio não, apesar de termos material que
potencialmente poderia ser usado como tal.
2112. E shows? Vocês estão programando
fazer alguns shows no exterior?
Ronaldo. Abrir caminhos em outros países é
uma das nossas metas para 2018 e o lançamento do disco na Europa (que está
previsto para agosto/setembro) nos ajudará muito neste sentido. É um trabalho
de formiguinha, mas a gente chega lá.
2112. Depois da apresentação da banda no
Totem Prog o seu público cresceu e com certeza existe uma expectativa muito
grande em relação ao próximo trabalho. Vocês já estão compondo alguma coisa? Dá
para adiantar alguma coisa?
Ronaldo. O David é um compositor de mão
cheia, com muitas composições na manga. Também tenho composições esboçadas mas
ainda não nos debruçamos em cima de um novo material. De toda forma, já estamos
pensando em quais músicas trabalhar em seguida. Temos já material para um novo
disco, mas é um processo criativo de aprimoramento que pretendemos aprofundar
daqui há alguns meses.
2112. Das novas bandas prog quem vocês
destacariam?
Ronaldo. Tenho procurado acompanhar bem de
perto novos lançamentos no estilo. Destaco as bandas Wobbler, Hadal Sherpa,
Soft Power, Arabs in Aspic, Tusmorke, Malady, Motorpsycho...bandas do norte da
Europa que fazem um som incrível e com uma sonoridade maravilhosa. Tem também o
Birth e o Astra nos EUA. Aqui no Brasil ótimas bandas em atividade – Arcpelago,
Marcenaria, Protofonia, Dialeto, Unitri, Anxtron, Vitral... tem para todos os
gostos e vertentes.
2112. E para fechar eu quero agradecer
pela oportunidade de entrevistar a banda e dizer que o microfone é de vocês...
Ronaldo. Obrigado ao espaço oferecido tão
generosamente pela Fúria 2112. Acho que uma coisa bonita dessa nossa época e
que as pessoas não percebem muito é o quanto a internet criou um paradigma de
colaboração e voluntarismo. Pessoas como você que se dedicam genuinamente a
produzir conteúdo de qualidade e difundir outros conteúdos artísticos e
culturais. Obrigado pelo apoio e interesse pelo som que fazemos. Desejo vida
longa!
David. Nós que agradecemos a oportunidade
de falarmos sobre o nosso trabalho, foi uma honra!
Élcio.
Agradeço a oportunidade de poder falar alguma coisa. Sou músico profissional há 41 anos e fazer parte da Caravela Escarlate está me proporcionando isso tudo, muito bom!
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