sábado, 17 de março de 2018

Entrevista Nuno Mindelis


É maravilhoso quando se consegue realizar grandes sonhos em sua vida... e que de alguma maneira repercute na vida de outras pessoas. Esta entrevista é uma delas assim como foi com o Made In Brazil, China Lee, Tibet, Beto Guedes, Marcos Valle entre muitos outros. Nuno Mindelis é um dos percursores do blues em nosso país numa época que pouco se falava sobre isso: blues brasileiro! Foi uma grande honra entrevistar um dos meus ídolos que é considerado um dos maiores guitarristas do mundo. Yeah!!

2112. A sua história com a música começou aos 5 anos de idade ainda em Angola... Você tem idéia do que você ouviu ao ponto de desejar ser músico? Os seus pais eram também eram músicos ou na sua casa ouvia-se muito música?

Nuno Mindelis. Ninguém era músico na família. Zero. Ouvia-se bastante música clássica e francesa, meus pais eram da leitura, da música, do Teatro etc. Gostavam muito, além dos clássicos (Beethoven, Mozart, etc.) de Gibert Bécaud, Georges Brassens e outros. Não sei qual foi o estímulo, mas além desse, provavelmente o começo do rock ’n roll e da guitarra rock, que foi meio naquela época, um pouquinho só antes de eu nascer. E quando tinha uns 5 ou 6 anos surgiram Beatles com força. Chegou um compacto com Hey Jude lado A e Revolution Lado B. Pode ter sido tudo isso, mas ainda acredito que possa também ser genético. Da mesma forma que saí tocando sem ninguém me ensinar, saí desenhando, escrevendo e outras coisas.

2112. É verdade que você aos 9 anos já confeccionava seus próprios instrumentos? 

Nuno Mindelis. Sim, (na verdade antes dos nove, aos nove ganhei violão de verdade) eu aprendi com os meus coleguinhas nativos. Numa lata de azeite de 5 litros fazia um buraco como aqueles dos violões, adaptava um pedaço de madeira como escala e usava fios de nylon de pesca como cordas. Tenho uma réplica mais ou menos recente de um desses, ainda os fazem por lá. 

2112. Os seus pais o incentivava? 

Nuno Mindelis. Eu diria que eles talvez se espantassem mais do que incentivassem. Mas deles ganhei o primeiro violão de verdade, aos 9 anos. A escola, o curso superior etc. eram sempre mais incentivados, de forma obsessiva até. Mas os professores (apesar de muito bons tecnicamente) eram uma lástima do ponto de vista pedagógico. Eu simplesmente não tinha interesse naquilo. Apesar disso, a ‘síndrome do fracasso’ fica tão impregnada que me formei em Direito. 

2112. Que impacto causou o blues na sua vida? Foi amor à primeira vista?  

Nuno Mindelis. Pode-se dizer que sim. Já ouvia um monte de coisa (Otis redding, Beatles, Shadows, etc.) quando ouvi B.B. King e Big Bill Broonzy aos 10 anos nunca mais fui o mesmo.

2112. Em 1975 sua família mudou-se para o Canadá e lá você formou uma banda de blues e participou também de várias jams nos clubes locais. Deve ter sido um período de grande aprendizado, não é? 

Nuno Mindelis. Parte da família, meu pai não foi. Sim, sem dúvida, na questão do aprendizado. Mas mais aprendizado ainda foi assistir de perto os meus heróis, verdadeiros Deuses inalcançáveis cujos LPs tinha em África, de repente ali, bem na minha frente, dava para pedir música. Aos 17 vi Willie Dixon com banda da Chess Records e Roy Buchanan na guitarra, por exemplo. 

2112. Nestas idas aos clubes você chegou a tocar com algum grande bluesmam?  

Nuno Mindelis. Não naquela época. Tinha só 17 anos e era o começo de um longo exílio. Mas raspei uns caras em canjas que hoje são artistas consagrados. 

2112. Um ano depois você já estava morando em terras brazillis... Até o lançamento de Blues & Derivados o que você fez neste período?   

Nuno Mindelis. Fiquei tentando sobreviver, redesenhando a minha vida, tinha perdido tudo na guerra civil, trabalhando em emprego regular, batente durante o dia todo, terminando faculdade à noite, alguma gig de noite aqui e ali também e nos fins de semana, 3 filhos para alimentar etc.

2112. 1990 marca o lançamento do seu primeiro trabalho o “Blues & Derivados” pelo selo Eldorado. Como surgiu a proposta?  

Nuno Mindelis. Blues & Derivados não foi na verdade selo Eldorado. E foi acho que em 1987 ou 88. Saiu por um estúdio/gravadora independente (Origem) que fez uma parceria com a Brasil 2000 (rádio). O que acontece é que a rádio Eldorado tocou muito esse disco, tinha uma versão blues para uma música do Caetano que eles piraram. 
  • Informação incluída na discografia do guitarrista na Wikipédia: Blues e Derivados (1989) em formato LP vinil pelo selo Eldorado.
2112. Você já tinha material autoral suficiente ou também incluiu releituras de clássicos? 

Nuno Mindelis. Coloquei somente um clássico, I put a Spell on You, de Screaming Jay Hopkins, mas porque gosto da música, não porque faltasse material.

2112. O que mais o inspira na hora de compor? 

Nuno Mindelis. Atualmente, para ser franco, pouca coisa. Talvez somente o próprio blues seja o motor. 

2112. 1992 foi um ano fecundo com a sua participação em vários festivais de blues e também do lançamento do álbum Long Distance, certo?  

Nuno Mindelis. De fato. Ali acharam que eu era a melhor coisa depois da descoberta da mortadela, então era chamado para tudo, aparecia o tempo todo na TV, jornais, rádios. Mas foi preciso muito suor e anos de trabalho para (e que a revista Veja e a Radio Brasil 2000 revelassem que valia a pena) para os festivais acreditarem e chamarem.

2112. Me responda uma coisa... por que este álbum foi relançado em 1988 como Nuno Mindelis & The Cream Crackers? Algum problemas contratual? 

Nuno Mindelis. Boa pergunta, por que foi relançado sem eu ser consultado, com capa diferente, nome diferente, sequência diferente, tudo diferente mas a mesma coisa? (tive amigos que compraram e descobriram que já tinham, era o mesmo álbum). Essa aberração é cometida pela gravadora que não tem respeito pelo artista e nem o consulta sobre o assunto. Recentemente estão fazendo o mesmo com os fonogramas, publicaram nas plataformas digitais sem me avisar e sequer ajustar royalties. Descobri por acaso, assim como o relançamento desse disco. 

2112. Seus esforços foram recompensados ao ser eleito pela revista Guitar Player em 1994 como o melhor guitarrista internacional de blues. O que isto significou para você? O prêmio te abriu muitas portas?    

Nuno Mindelis. Foi em 1998 o prêmio. Antes (acho que em 1992) foi um spotlight (destaque) feito pelo editor da revista, que comparou a Jimmy Page. Sobre o prêmio, não sei se abriu tantas portas assim, as maiores portas foram provavelmente da autoconfiança. Apesar disso, numa época em que não havia distribuição digital, comecei a receber cartas dos EUA e da Europa sobre o fato. Foi uma grande vitrine e trata-se da Bíblia mundial da guitarra. 

2112. Você é tipo que ouve apenas blues ou gosta de tudo um pouco?  

Nuno Mindelis. Eu sou o tipo que se bobear gosta mais de outras coisas até mais do que de blues. Blues para mim não é gosto, é religião e abecedário, é outra coisa. Ouço muito pouco, aliás. E quando ouço, prefiro milhares de vezes os meus heróis, John Lee Hooker, Jimmy Reed, etc. Eu gosto muito de muitas outras coisas, seja na música ou em qualquer área. Eu ouço muito mais Keith Jarret e Bob Dylan do que blues, por exemplo. E gosto de bandas novas boas também, inglesas (e algumas americanas como Alabama Shakes, Foo Fighters etc.). Falando em Alabama, eu gosto muito de Alabama3, que faz blues com eletrônica. Gosto de Marisa Monte, Zé Ramalho, de Nick Drake, Alex Murdoch, etc.etc.

2112. Particularmente acho que todos os músicos deveriam ouvir vários segmentos musicais para criarem um estilo próprio e mesmo apreciar a música por diferentes ângulos. Achei muito interessante o grupo Sepultura ter incluído material étnico em Roots pois deu novas possibilidades para o heavy metal que é uma vertente muito fechada, não é?      

Nuno Mindelis. Sem dúvida nenhuma. Sou favorável a misturas, sou aliás bastante irrequieto com isso. O meu último disco de blues elétrico em formato tradicional é de 2003. Depois disso só fiz experiências, com eletrônica e outros elementos, em português, poesia, etc. Fiz um disco chamado Free Blues que exatamente pegava os clássicos que fizeram a minha cabeça quando criança e os relia com elementos novos, eletrônica, hip hop, etc. RL Burnside lançou pelo menos dois discos assim dos quais gosto muito. 

2112. E mesmo você ao aproximar o blues do samba, da tecnologia usando baterias eletrônicas em um dos seus álbuns e mesmo a inclusão de DJ’s em seus shows. Porque devemos ser tão fiéis diante de infinitas possibilidades, não é mesmo?    

Nuno Mindelis. Acho que a linguagem pura serve para você aprender as regras. Depois de conhecê-las bem, deve quebrá-las, de preferência. Mas atenção , repito: depois de as conhecer bem, senão é chute sem valor artístico. Em palavras mais simples: antes de pintar abstrações, deve ser capaz de pintar paisagens e/ou desenhar retratos decentemente. Por aí. 

2112. Os mais puristas reclamaram muito com você?

Nuno Mindelis. Na verdade não. Talvez quem não compreendeu a proposta tenha deixado de ouvir sem reclamar. Mas conheço pelo menos três super puristas que acham Free Blues o melhor caminho e me pedem para continuar nele, inclusive. (puristas de rádios e produções nos EUA, que são mais radicais em geral, até). 

2112. ... mas o risco foi positivo? 

Nuno Mindelis. Sempre é positivo. Mesmo que não pareça na época em que se faz.  Sempre é preciso risco na arte e na vida. Eu faço as coisas por elas próprias, faço para mim. O que credencia é o tempo e a sinceridade da obra. As pessoas em geral só compreendem as coisas muito tempo depois, se elas estiverem por aí podem acabar sendo descobertas, como pepitas. Senão, não, mas você fez a coisa certa. 

2112. Em conversa com Álvaro Assmar falei do meu desejo em ouvir um disco tributo ao Cartola com suas músicas vertidas para o blues. Não seria algo inusitado e interessante? 

Nuno Mindelis. Poderia ser, claro. Mas quem fizesse teria que saber bem as regras, senão ficaria estereotipado.  

2112. Numa resenha de um box sobre o compositor Cartola fui rechaçado ao dizer que suas composições eram tão intensas e viscerais quanto as do bluesman Robert Johnson. E eu fiquei me perguntando o que os faziam diferentes. A música? A etnia? Vejo que o que os une é muito mais forte que é o racismo que eles vivenciaram e o próprio amor que ainda é matéria prima para o blues e o próprio samba de raiz.     

Nuno Mindelis. Eu sempre uso esse tipo de comparação, caras como Pixinguinha etc. me parecem o equivalente dos bluesman do Mississipi, em legitimidade e talento. Nada para ser rechaçado, você está certo nisso. 

2112. Regis Tadeu escreveu certa vez que você é “um dos maiores representantes do blues da América do Sul (...) um compositor de mão cheia" e um "excelente guitarrista.” Isso mexe com seu ego ou você é do tipo que continua seguindo em frente? 

Nuno Mindelis. A única coisa que isso mexe em mim é no carinho pelo Regis, aos 30 anos talvez isso mexesse no ego, agora não chega perto. 

2112. Em suas viagens para tocar em festivais ou apresentações próprias você fica atento ao que está acontecendo com o cenário do blues. Na sua opinião ele cresceu nos últimos anos?  

Nuno Mindelis. Não tão atento, vai parecer arrogante mas é sincero, é difícil me surpreender depois deste tempo todo (até com gringos no blues contemporâneo, que praticamente não ouço). Apesar disso, sei que há talentos muito grandes no blues nacional, ele cresceu muito, especializou-se bastante.  O blues contamina, mesmo não estando na mídia, há sempre um moleque querendo aprender a tocar gaita no Arroio e outro dedilhando com bottleneck no Chuí. 

2112. Quem você destacaria atualmente?  

Nuno Mindelis. Diria que Fred Sunwalk é um guitarrista de primeiríssima. Como dizem os americanos, alguns têm “the thing”, outros tocam bem mas não têm. “The thing’ muda tudo, emociona, impressiona, move, empurra, etc...  

2112. Bandas principiantes o procura para que avaliem seus trabalhos? Tem muita coisa bacana acontecendo sem o conhecimento do público?  

Nuno Mindelis. A vida inteira recebo material de bandas e mais bandas. Umas gosto, outras nem tanto. 

2112. Meu primeiro entrevistado foi o guitarrista Igor Prado. Acho o seu trabalho bem interessante e diversificado ao trazer elementos do soul, do funk, do boogie, do rthythm & blues e claro do próprio blues que é a base do seu trabalho. Isso o leva a interagir com variadas plateias além de dar a ele condições para experimentar constantemente, não é?             

Nuno Mindelis. Costumo chamar isso de erudição. Não basta gostar de Stevie Ray Vaughan, sair copiando e achar que já foi. Ninguém pode ser completo e transcender se não tiver na bagagem milhares de horas e audição de todos os mestres em todos o gêneros possíveis. Não existe blues sem Gospel (o de verdade) ou spirituals, não existe electric blues sem delta Blues e sem soul, não existem Jazz, rock, country ou folk sem blues ou sem soul. A música americana (chamada justamente de ‘Americana” pelos próprios americanos), é um DNA completo, é mais vasto do que somente um gênero ou outro. É como aprender samba sem aprender bossa ou coisa parecida. Igor acompanha artistas de fora, só por isso já ampliou o vocabulário. 

2112. Isso muito me faz lembrar do Robert Cray e sua música...

Nuno Mindelis. Robert Cray é Blues e Soul. Com pitadas de Pop, na fase inicial. Foi uma boa fórmula, na minha opinião, embora eu só ouça quando toca em algum rádio que deixei ligado. 

2112. Você poderia falar um pouco sobre os álbuns Outros Nunes e Free Blues?  

Nuno Mindelis. Acabei falando um pouco sobre eles antes. Free Blues visava responder à pergunta de uma criança do século 21: o que é blues?  Bom, vamos responder com um pouco de atualização de linguagem e de forma mais palatável, esse foi o mote, digamos. Afinal, quando eu era menino e ouvi John Mayall & The Bluesbreakers aquilo já era blues com injeção de eletricidade e de rock. Stones também! Não era o blues tradicional de Skip James, Son House ou Robert Johnson. E essa mistura arrebatou gerações e mais gerações, que acabaram conhecendo (e se apaixonando por) blues do qual nem tinham ouvido falar. Portanto imaginei que para as gerações século 21 a injeção deveria ser de eletrônica e rap, trance, coisas assim. Sem perder a magia do blues.  Se deu certo para mim e para tanta gente, por que não daria para a molecada de então? (foi em 2010) . Outros Nunos era um pouco isso também, mas tinha menos foco no blues em si (embora tudo que eu encoste vire blues) e mais na questão de eu precisar ‘vomitar’ todos os textos em português que escrevo desde sempre, que ficam em baús e mais baús, gavetas e mais gavetas, guardanapos e mais guardanapos. Tem letra ali que escrevi com 17 anos (Rei dos Animais, por exemplo). 

2112. A última vez que ouvi falar de um disco seu foi em 2013 quando comprei o Angels & Clowns com a participação da The Duke Robillard Band. Como surgiu essa parceria?   

Nuno Mindelis. Obrigado por ter adquirido o disco. O selo Duchess Blue é de Duke e de um grande fan meu de muitos anos, americano. Um dia encontrei os dois numa cerimônia do Memphis Blues Awards e papo vai papo vem um tempo depois, relembrando daquele dia etc. veio a idéia de fazer um disco pelo selo deles. Era para ser um disco de Blues mas acabei fazendo Angels & Clowns que não é blues na forma tradicional. (taí um indício inequívoco da questão que vc colocou sobre a necessidade de  diversidade musical, bagagem, fusões etc..Angels tem um pouco de tudo o que ouvi, Soul de Booket T e Otis, Rock de Jimi, Pink Floyd , Stones , etc.etc.etc.) 

2112. Quando teremos um novo trabalho seu?

Nuno Mindelis. Estou pensando se vale a pena. Parece que agora é preciso que a letra tenha palavões, sexo explícito e as melodias sejam retardadas  para lançar algo. Não consegui ainda retroceder nessa área, estou tentando. 

2112. Bem falado... aproveito para agradecer sua disponibilidade em dar esta entrevista e mesmo pela paciência em responder. O microfone é todo seu... 

Nuno Mindelis. Muito grato pela atenção e consideração. Um prazer. 

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