terça-feira, 25 de agosto de 2020

Entrevista Zé Brasil (Parte 1)

  

Uma das grandes lendas do rock brasileiro conta com exclusividade sua longa trajetória desde os anárquios anos 60, os duros anos 70, a ditadura e sua ida para a Inglaterra.

2112. Você começou cedo na música participando de vários conjuntos. Que lembranças você tem desse período?

Zé Brasil. Comecei em meados dos anos sessenta. Ensaiávamos na sala de visita da minha casa da rua Padre João Manuel, 446, no bairro de Cerqueira Cezar, hoje Jardins, em São Paulo.

2112. Eram bandas de garagem ou vocês faziam shows?

Zé Brasil. Tocávamos em festinhas de casa de amigos.

2112. A set list dos shows eram constituída apenas de covers ou você já compunha material próprio?

Zé Brasil. Eu já compunha mas nessa época tocava bossa, jazz e rock na bateria. Normalmente em trio ou duo de piano, violão e bateria. No final dos sessenta comecei a participar de bandas de rock com guitarra e baixo.

2112. Em 1968 você entra para a faculdade e logo passou a fazer parte do movimento estudantil que lutava contra os abusos da ditadura. Foram tempos duros, não?

Zé Brasil. Participei do Movimento Estudantil através da AP (Ação Popular) e tínhamos grupos de estudo e ações dentro e fora da faculdade. Estudava arquitetura na Universidade Mackenzie que era predominantemente de direita, inclusive com muitos elementos importantes do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) e nós tínhamos que nos proteger até dentro do Campus. Minha ação principal foi propor a greve geral de 1968, que foi aceita e aconteceu, numa assembleia que contou com a presença da reitora da Universidade, Ester Figueiredo Ferraz, que depois foi ministra da Educação do regime militar. Durante o curso fomos ameaçados de expulsão diversas vezes pois havia um Ato Institucional que permitia isso https://www.plural.jor.br/documentosrevelados/repressao/forcas-armadas/lei-477-o-ai5-das-universidades/

2112. Neste período você chegou a tocar em alguma banda?

Zé Brasil. Durante a faculdade, em 1968, foi quando optei pela música e duas coisas contribuíram para isso: a Tropicália, quando vi pela televisão e fiquei chapado com a performance/manifestação do Caetano Veloso e dos Mutantes durante o Festival do TUCA, e a famosa guerra da Maria Antonia quando as duas correntes radicais de direita (Mackenzie) e esquerda (USP) digladiaram-se numa verdadeira batalha. Eu assisti atônito, pois tinha amigos dos dois lados. Larguei o Movimento Estudantil a assumi a causa hippie através da música. Comecei a montar conjuntos com amigos e amigas na minha casa para tocar minhas músicas, inclusive. Também acompanhei o compositor Maranhão em show e TV.

2112. Como vocês estudantes, músicos, poetas, atores, jornalistas etc driblavam a ditadura para colocar seus ideais de liberdade em prática?

Zé Brasil. Era a nossa guerrilha artística com todos os riscos que qualquer guerrilha corre. As músicas e os espetáculos eram censurados mas a gente acabava se apresentando e tocando. Eu tive uma música censurada, por exemplo onde as palavras eram escritas ao contrário e como o censor não entendeu, proibiu. Tínhamos até “carteira de puta” emitida pela Polícia Federal para fiscalizar nosso comportamento e antecedentes. Era um documento obrigatório.

2112. Em algum momento você chegou a ser preso?

Zé Brasil. Sim, umas duas vezes. A primeira, acho que em 69 ou 70, estava com minha namorada tentando entrar no Teatro Vereda e o porteiro chamou a polícia e nos prenderam. Lembro que o Chico de Assis tentou nos tirar da viatura mas não conseguiu e fomos parar no temido 3° DP - Campos Elíseos, da OBAN (Operação Bandeirante) e ficaram me aterrorizando a noite toda. Um advogado, amigo da irmã da minha garota, nos tirou no dia seguinte. Mais tarde em 1973, tempo do Médici, fui abordado por um camburão que parou meu carro na Avenida Rebouças à noite e, como tínhamos uma pequena quantidade de maconha, fomos parar na cadeia da delegacia do Quarto Distrito Policial (Consolação). Os quatro ocupantes eram “suspeitos”: minha namorada, uma modelo negra com vestes africanas, um amigo músico, John Flavin, com cabelo tão grande quanto o meu e uma amiga loira, alemã, de 1,80 de altura. Maior “bandeira” e eu era um subversivo da mais alta periculosidade; hippie, esquerdista, cabeludo, rockeiro e maconheiro. Não deu outra: na delegacia me deram umas porradas, rasparam meu cabelo, me levaram para um quartinho, me penduraram no pau-de-arara, me bateram com um bastão e me aplicaram pelo menos uma dúzia de choques elétricos com uma maquininha diabólica que quanto mais rápido girava mais forte era o choque. Minha sorte foi que meu tio era um deputado federal influente e tinha nomeado o delegado titular de lá. Dois dias depois me liberaram pedindo desculpas. Ainda bem que nem as garotas, nem meu amigo, nada sofreram além da terrível humilhação. Talvez o pior fim de semana da minha vida. Isso e outros fatores me convenceram a um exílio voluntário nos EUA a partir de julho de 73.

2112. Foi nesse período que você conheceu Waly Salomão, Gil, Caetano, Os Mutantes, Antonio Peticov, Nico Pereira de Queiroz etc. O que vocês mais discutiam ou planejavam quando se encontravam?

Zé Brasil. Foi um momento mágico, para compensar todas as agruras de 68. O Toninho Peticov foi, indubitavelmente, nosso Timothy Leary. Ele era da pioneira turma de psicodélicos do Brasil e nos conhecemos por volta de 1966/67. Alain Voss que ficou conhecido pelas capas dos Mutantes, fazia parte dessa turma também e já desenhava muito, apesar de careta. Através do Peticov conheci os tropicalistas Waly Salomão, Caetano, Gil, Tom Zé, Gal, Guilherme Araújo, Torquato Neto, etc. Fui com eles assistir um show do Made in Brazil na lanchonete Bob’s na rua Augusta e o Peticov me apresentou o Nico Pereira de Queiroz, meu grande amigo e parceiro até hoje. Ele trabalhava no Juizado de Menores e gastava todo o seu salário em discos importados que eu levava com o Peticov para os baianos ouvirem e se informarem sobre a psicodélia inglesa e americana, principalmente, no apartamento do Caetano na avenida São Luiz que tinha um belo equipamento de som, mesa de ping-pong, etc. Também estive presente nos programas Divino Maravilhoso, inclusive nos ensaios. Para o Festival da Record, que o Tom Zé ganhou, confeccionei as faixas junto com o Peticov na minha casa e os baianos iam lá para aprovar. À noite íamos para o apartamento da Bocha, uma milionária uruguaia, em Higienópolis, onde aconteciam grandes papos-cabeça e encontros com o José Simão, artistas, escultores, pintores, cineastas como Rogério Sganzerla e Walter Hugo Khouri, etc. Cheguei no apartamento pouco tempo depois de prenderem o Caetano. O Gil me convidou pra tocar com ele, depois de um som com o Lanny Gordin e o Tony Osanah no apartamento dele mas logo foi preso também. Reencontrei os dois em Salvador no Carnaval de 1969, curtimos bastante e depois, no meio do ano, voltei á Bahia e me despedi deles no show inesquecível do Teatro Castro Alves antes de partirem para Londres. Chegamos a nos encontrar em Salvador e em São Paulo nos anos 70. Fui convidado pelo Guilherme Araújo, num jantar com o Caetano na cantina Piolin, para tocar com o Apokalypsis no Rock Horror Show mas não aceitei por causa do cachet. Encontrei com o Gil na Rádio América em 1975 e batemos um longo papo, como ele gosta.

2112. Nessa época a Jovem Guarda estava saindo de cena e a Tropicália invadiu o espaço com toda a sua riqueza musical, visual e literária. O que mais te marcou nesse período?

Zé Brasil. A Tropicália explodiu em 1968, que foi um ano revolucionário no mundo inteiro. Minha convivência e amizade com os tropicalistas foi um marco importante na vida e me ajudou a decidir pela filosofia hippie e pela música como estilo de vida.

2112. O cenário tinha bandas incríveis como Os Mutantes, Os Brazões, Brazilian Octopus, Os Panteras, Baobás, Spectrum... que influenciou toda uma nova geração de bandas antológicas como Secos & Molhados, Flaviola & O Bando do Sol, Novos Baianos, Ave Sangria etc. Foram anos muito férteis, não?

Zé Brasil. Costumo dizer que nós, os setentistas, fomos rockeiros tropicalistas pois desde os Secos & Molhados em 1973, que a influência do tropicalismo foi preponderante na década de 1970 e em toda a música feita no Brasil de lá para cá. A minha turma surgiu depois dos Secos e se constituiu num movimento de rock psicodélico autoral, influenciado pelo jazz-rock americano e pelo rock progressivo inglês, principalmente. Outras bandas eram mais voltadas para a MPB. Nosso objetivo era estudar e tocar o melhor possível pois nosso referencial eram músicos virtuosos e bandas sensacionais.

2112. Na sua opinião a Tropicália já foi digerida em sua totalidade ou ainda temos muito a descobrir?

Zé Brasil. Uma das características essenciais do Tropicalismo é o ecletismo musical e artístico. Através da antropofagia cultural levantada pelo Oswald de Andrade, os baianos conseguiram expandir o leque temático e criativo da música brasileira. Isso torna a sua existência atemporal e libertária para quem quiser se inspirar na sua possibilidade de expressão artística, comportamental e portanto infinita enquanto durar, ou não, como diria o Caetano Veloso.

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2112. Como foi a sua transição do desbunde dos anos 60 para os duros anos 70 com as prisões de Gil e Caetano, as mortes de Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison? Como você analisa todos esses acontecimentos?

Zé Brasil. Foram grandes transformações que aqui no Brasil enfrentavam uma reação conservadora extrema e violenta. Mas isso nos desafiou a produzir música e arte de qualidade apesar da pouca divulgação na mídia oficial.

2112. Li um artigo em que você afirma que: "Minha carreira começou mesmo em 1971, quando participei do Tigres da Noite, onde cantava e tocava bateria." Foi você quem criou a banda? Que tipo de som vocês faziam e quem fazia parte da banda?

Zé Brasil. No final de 1971 iniciei minha carreira de músico profissional tocando com os Tigres da Noite na Última Peça do dramaturgo Zé Vicente.

2112. Vocês chegaram a registrar algum material?

Zé Brasil. Só algumas fotos que apareceram na imprensa underground https://www.facebook.com/ze.brasil/posts/10207507838090028

2112. As bandas sofriam bastante com a falta de estrutura, espaços para tocar, censura nas letras e nas capas dos discos, nos eventos, nos cinemas e teatros... realmente foi um período difícil para quem não dizia amém. Nessa muitas bandas sucumbiram, não é?

Zé Brasil. Infelizmente pois o som que produzíamos era único e diferenciado.

2112. Como era a rotina de estudar, compor, ensaiar e se manter alerta para não ser pego pelos militares?

Zé Brasil. Era no verdadeiro sentido da palavra underground. Era o nosso udigrudi tupiniquim, tudo na moita e de repente explodindo em festivais e shows inesquecíveis.

2112. Não sou a favor de "governos autoritários" mas a MPB e o próprio rock brasileiro nesse período do AI-5 atingiu um nível artístico considerado. Grandes bandas, grandes álbuns, grandes músicos, grandes poetas e compositores. Temos que admitir... foi um período muito fértil artisticamente falando, não é?

Zé Brasil. Foi uma resposta à altura do desafio que enfrentávamos.

2112. E muito do que se compôs e produziu naquela época de repressão continua super atual...

Zé Brasil. A situação do país e do planeta evoluiu e os problemas se multiplicaram. A atitude e o comportamento dos artistas sempre traz um sopro de alento, esperança e renovação para a Humanidade.

2112. Em 1973 no Festival de São Lourenço você e Arnaldo Baptista estreitam amizade mas você logo partiu para viver em terras americanas. Porque você decidiu ir embora? O que você fazia lá para sobreviver?

Zé Brasil. Hoje, pelo distanciamento no tempo e no espaço, sei que foi um exílio voluntário que me ajudou a entender melhor o mundo, suas diferenças e possibilidades. Aprendi a viver de música, tocando nas ruas e night-clubs de São Francisco na California.

Fotos: Dean Claudio (foto da abertura). 

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