quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Entrevista Picanha de Chernobyl


A Picanha de Chernobyl é sem sombra de dúvidas uma das melhores bandas surgidas nos últimos tempos no cenário do rock brazuca. São mais de dez anos de estrada, quatro grandes álbuns de estúdio e milhares de shows (inclusive no exterior!). Para quem conhece parabéns e para quem desconhece corra atrás.  

2112. Este ano a banda completa dez anos de estrada e quatro   álbuns maravilhosos na bagagem: Picanha de Chernobyl, O Velho e o Bar, O Conto, a Selva e o Fim e o mais recente Sobrevive. Qual o balanço que vocês fazem desse tempo?

Matheus Mendes. Muito obrigado pelo espaço, primeiramente! É uma boa pergunta. É tão complexo para uma banda que teve tantos integrantes como nós, já passou por muitos formatos e cada disco tem sido, durante esses dez anos de estrada, muito diferentes entre si - claro, sempre manteve praticamente o mesmo estilo. Rock brasileiro.

2112. Sobrevive saiu recentemente com grande apoio dos fãs da banda, não é?     

Leonardo Ratão. É um disco que conseguimos com o apoio do público da Picanha de Chernobill, através de uma campanha inesquecível de financiamento coletivo em que viabilizamos todos os custos de produção. Foi demais. Ultrapassou a meta que estabelecemos! 
2112. Quem produziu os trabalhos?

Chico Rigo. Nós mesmos. Sempre tivemos essa vontade, esse sonho de gravarmos um disco por nós mesmos, em uma imersão. Foram mais de uma semana de produção e captação e a mixagem foi a que demorou mais, digamos uns 5 meses. O disco foi concebido em uma fazenda no interior de São Paulo, em Itu, a Fazenda Rosário, que pertence a um grande parceiro nosso de rua.

2112. É interessante que ao invés do tradicional disco ao vivo vocês optaram por um trabalho de estúdio para comemorar os dez anos da banda.

Matheus Mendes. Já lançamos três discos ao vivo e a galera acaba querendo mesmo um álbum de músicas inéditas.

2112. Vocês lançaram algum single antecedendo a chegada do novo álbum?

Leonardo Ratão. Lançamos três singles que acreditamos que fossem representantes do álbum, de certa forma. E para o Sobrevive, Hey Você!. São Muitos Que Se Vão e Não Sou de Esperar são faixas que não são tão longas e podem representar a obra antes do público escutar por inteiro.
2112. A Picanha tem uma grande performance ao vivo o que sem dúvida daria um grande registro em dvd. Vocês tem algum projeto nessa área?

Chico Rigo. Não temos nada em vista no quesito DVD ou esse tipo de material por agora, pois estamos produzindo videoclipes para o Sobrevive. Seria incrível gravar um show e produzir em formato físico. É uma boa idéia!

2112. Nos arquivos da banda existe gravações dos shows realizados nos palcos europeus? Existe a possibilidade desse material ser lançado algum dia?

Matheus Mendes. Lançamos recentemente um ao vivo em Bonn, na Alemanha que está disponível no nosso canal do YouTube, é só acessar. Temos uma edição de disco ao vivo da segunda turnê, do ano passado, já disponível nos shows e também, a segunda edição em fase de produção, com shows da tunê deste ano!

2112. Vocês pretendem investir mais nessa área? Como foi a recepção da banda nos palcos europeus?

Leonardo Ratão. Sempre foi muito boa e aberta. Neste ano, fizemos a terceira tour européia, já com o disco Sobrevive nas mãos e voltaremos para produzir o LP desse mesmo, ano que vem. Sempre é um bom investimento ser uma banda estrangeira em algum lugar do mundo, principalmente se é uma banda brasileira. Os gringos amam o Brasil, as pessoas daqui e valorizam demais a nossa música e a nossa arte em geral. O nosso plano, desde o começo, era criar laços para todo o ano voltar. Está cada vez mais preenchido de amigos, cada vez mais prazeroso e viável. Vale muito à pena investir em outras culturas, até porque somos uma banda que se apresenta nas ruas e isso, lá fora, é um assunto muito valorizado.
2112. Uma das maiores barreiras para uma banda brasileira conquistar o mercado externo é a questão da linguística. Existe projeto de lançar algum álbum em inglês?

Chico Rigo. Acho que não é de muito o nosso estilo. É uma língua bonita, mas o português é a nossa praia. Já gravamos algumas coisas mistas com inglês como em Come Back ou Oh Be My Baby, My Baby Blue, mas sempre foi uma coisa qualquer, sem qualquer tipo de protagonismo. E a música não tem fronteiras, assim como existem músicas de todas as línguas. Quem não gosta de ouvir uma música em francês? É bonito também!

2112. Temos aqui uma ótima cena mas falta toda uma infraestrutura em termos de público/patrocínios/lugar para tocar etc. Na opinião de vocês o que falta para o mercado interno acontecer?

Matheus Mendes. Estamos cada vez mais perdendo coisas fundamentais no nosso país, com o governo de um boçal. O Brasil é um país de cultura rica, mas não há a valorização merecida para o que é orgânico, cultural, educativo - sempre as fórmulas, o entretenimento em excesso e a venda rápida em massa para o povo. Existe uma gama de bandas fantásticas que não estão nas primeiras paradas, existem milhares de artistas que estão produzindo muito nesses tempos de caos que se estabeleceram por culpa dessa corja que está destruindo tudo, por onde passa.
2112. Desde 2012 vocês estão vivendo em São Paulo. O que levou vocês a tomarem essa decisão?

Leonardo Ratão. Foi uma das coisas mais importantes que aconteceram na história da banda. Quando ainda morávamos em Porto Alegre, fomos, com a banda Os Vespas, para um congresso que se chamava Fora do Eixo, onde vários artistas e produtores se encontravam. Foi muito bom, conhecemos muitas pessoas queridas que, até hoje, temos contato no meio musical. Logo depois, fizemos uma turnê pelo estado de SP, ambas as bandas, e foi inesquecível. Aí, então, decidimos vir em definitivo. 

2112. Foi dificil a adaptação na terra da garoa? Como foram os primeiros tempos?

Chico Rigo. Foram cheios de vontade e de amizade. De começo, alugamos um apartamento no Edifício Planalto, na rua Maria Paula, centro de São Paulo - a porta ficava aberta, todo mundo entrava - e mais parecia com um programa de televisão, onde não se sabia quem seria o próximo a passar pela porta de entrada. Muita música, muitas composições, muita pizza e muita gente. Essa fase foi responsável por grande parte das músicas que compomos no disco "O Conto, A Selva e O Fim".
2112. Hoje vocês se sentem mais paulistas que gaúchos ou tudo está meio a meio?

Matheus Mendes. Boa pergunta - nenhum dos dois, eu diria! Acho que aqui em São Paulo tem muitas características trazidas de quem vem de fora do estado. Aqui nós conhecemos muito do que é o nosso país, da política às gírias, dos costumes também. Enfim, sentimos que somos gaúchos paulistas, mas acima de tudo, somos artistas brasileiros.

2112. O Sul, na minha opinião, tem uma das maiores e melhores diversidades musicais do planeta. Cara, quantas bandas e discos fodas. É uma puta cena, não?

Leonardo Ratão. Dos anos 60 aos 90, o Rio Grande de Sul teve uma efervescência musical e audiovisual intensa. Ainda é regado à exímios artistas de todos os campos, não só da cena musical. Nos dias de hoje, podemos ter uma boa ideia do que foi e do que continua sendo a linha que o nosso estado segue culturalmente. A falta de incentivo e de espaços também influenciaram muitas bandas a desaparecer, mesmo que outras conseguiram se manter. É assim em todo o país, penso - mas o sul equivale a qualquer estado brasileiro, todos ricos de expressões e segmentos diferentes, ritmos e melodias. 

2112. Apesar de estarem morando em Sampa vocês acompanham toda a movimentação que acontece na cena gaúcha? O que vocês tem ouvido de interessante?

Chico Rigo. Acompanhamos sempre e volta e meia, estamos lá nos apresentando também.
2112. Sempre ouço falar que os fãs do sul além de fiéis são muito família. Isso cria vínculos profundos entre a banda e o seu público, não é?

Matheus Mendes. Acho que não é só lá, temos isso aqui também. As pessoas acolhem a nós em qualquer lugar.

2112. Foi depois de uma apresentação na tv que vocês foram convidados a se apresentarem no Rock In Rio. Qual foi a sensação de tocar para uma platéia maior que a de costume?

Leonardo Ratão. Foi mágico, com certeza. Muita gente se conectou, conheceu a banda e tivemos uma melhora de público, também. Gostaríamos que fosse assim sempre, só palcão - mas não é só isso que existe, palcos pequenos também são um mistério que, muitas vezes, superam a alegoria e a imensidão de um público gigante.

2112. Quais as melhores lembranças que vocês tem do festival e do próprio show da banda?

Chico Rigo. O hotel em que ficamos. Lá, ficamos no mesmo quarto, azucrinando, rindo alto, contando piadas e criando apelidos. Estava rolando uma energia muito bacana naquele tempo, de renovação, novo ciclo. Isso tudo influenciou no show. Foi incrível cada minuto dessa viagem.
2112. O show no Psicodália também foi outro grande momento na história da banda, não é?

Matheus Mendes. Foi, sim. Acampamos todos juntos, vimos muitos shows excelentes, fizemos um dos shows mais energéticos da história da banda às 3h da manhã. Foi inesquecível!

2112. Como surgiu o Projeto "Picanha na Rua" que já conta com mais de mil apresentações?

Leonardo Ratão. Foi uma questão de sobrevivência, de poder disseminar a banda. Tivemos esse ideal quando vimos a Mustache & os Apaches atuando bem na rua. Vislumbramos um futuro nas ruas para nós, também. E assim foi o que de melhor fizemos nos últimos anos - conhecemos muitas pessoas e aproveitamos demais cada momento, assim como muita gente nos conheceu e nos apoiou em todos esses anos de rua. Valeu a pena.

2112.
Vocês já cobraram do Guiness o nome de vocês no Livro dos Records? Afinal vocês são como o Pelé do rock'n'roll, não é?

Chico Rigo. Ainda não, mas é uma boa idéia!
2112. Assistindo aos vídeos da banda sempre tem a participação de alguma banda/músico como o Made In Brazil, Johnatha Bastos, Bárbara Bivolt, Beto Bruno, Marcelo Gross, Lucas Caracik... É importante manter esse vínculo sem esquecer que isso também ajuda a ampliar e a diversificar o público.

Matheus Mendes. Importantíssimo ter essa noção de que todos andam juntos nessa caminhada artística. 

2112. Como surgiu a idéia de criar o Festival Anhagabablues? Ele já teve quantas edições?

Leonardo Ratão. Quando morávamos em um prédio no Anhangabaú, tínhamos como vizinho o Lumineiro, da Mustache & Os Apaches. Além dele, haviam mais vários artistas e figuras que conviviam conosco, cada um em uma sala comercial - quase uma 'invasão' em um prédio comercial, onde todos eram acolhidos pelo Estúdio Lâmina. Nesse convívio, haviam momentos em que descíamos com os instrumentos, equipamentos, etc, para azucrinar geral e conseguir um troco. Bem em frente ao prédio em que morávamos. Essas jam sessions, em que participaram muitos parceiros e amigos, foi batizada de Anhangabablues, pelo querido Lumineiro. Aí, então, surgiu o festival logo depois, que conta com apenas duas edições e a terceira, dia 7 de dezembro desse ano. Já temos as bandas e estamos prestes a começar a divulgação! 
2112. As raízes musicais da banda estão nos anos 60/70. Quais bandas mais influenciam vocês?

Chico Rigo. Gostamos muito dos clássicos estadunidenses e ingleses, é claro. Mas a música brasileira desses tempos estão cravadas no nosso estilo de tocar e compor. Um pouco de tudo, de nacionalidades e ritmos, mas tudo dessa época é um bom estudo para nós, pela proposta da Picanha de Chernobill. Digo, também, que não se limita a essas duas décadas o nosso interesse pela música. Realmente os 60 e 70 nos agrada muito, mas atualmente tem tido artistas e bandas que nos encantaram e já inspiram nossas canções também, como a Teko Porã, os Mustaches (antes citados), Monoclub, Joe Silhueta, Molodoys, Murilo Sá, entre vários outros tão importantes quanto. 

2112. Achei super interessante vocês citarem no release da banda a influência da música brasileira de raiz no trabalho da banda. Vocês poderiam explicar melhor essa história?

Matheus Mendes. A pureza da música de raiz brasileira - que são vários segmentos - é incomparável. Do que temos registrado, é pouca coisa, mas é uma vida a se pesquisar. É tanta gente que contribuiu para arte que a busca nunca acaba. Talvez seja do que mais gostamos de ouvir atualmente.

2112. Olhando o cenário do rock hoje tem alguma coisa que empolgue vocês?

Leonardo Ratão. Todo mundo é roqueiro, na verdade! 
2112. Qual telefone/e-mail de contato para contratação de shows ou aquisição de cds?

Matheus Mendes. Nosso email para contato é
picanha.shows@gmail.com e telefone (11) 9 8484-2349!

2112. ... o microfone é de vocês!

Leonardo Ratão. Carlos querido, muito obrigado, de verdade, pelo espaço e pela entrevista! Ao 2112, sucesso sempre! Grande e fraterno abraço da Picanha de Chernobill.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Entrevista Luciano Alves



Depois do batera Dinho Leme mais um mutante aporta sua caravela em nosso porto. Desta vez é o tecladista Luciano Alves que participou do álbum Ao Vivo e nos conta uma pouco da sua longa e interessante carreira.
2112. Você começou seus estudos de piano aos sete anos e aos treze já era diretor musical de peças teatrais. Foi tudo muito rápido, não?
Luciano. Pensando bem, foi sim. Aos doze anos comecei a tocar profissionalmente em conjuntos e logo passei a tocar em peças de teatro sendo que em algumas fiz a direção musical. Mas isso se deve ao fato de ter começado estudando piano clássico aos sete. Foi o clássico que me deu técnica e conhecimento para encarar os trabalhos tão cedo. Sem o estudo diário de piano e de teoria musical eu não teria adquirido conhecimento geral e ouvido musical suficientes para entender como se faz arranjos e como se conduz uma banda. Foi o Eduardo Dussek que me ofereceu o primeiro trabalho para tocar e cuidar da direção musical no teatro.  
2112. Qual o músico, compositor ou banda em particular te influenciou no desejo de ser músico ou foi um conjunto de várias influências?
Luciano. Foram muitas influências tanto no âmbito da música clássica quanto da popular. Eu estudava clássico (Beethoven, Bach, Debussy etc.) mas, com doze ou treze anos era impossível ficar alheio aos movimentos da música popular (Beatles, Stones, Beach Boys). Considero minhas maiores influências os mestres Chopin, Bach, Rachmaninoff, Yes, Keith Emerson, Hendrix, Janis Joplin, Oscar Peterson, Chick Corea, McCoy Tyner etc.). Em especial, uma banda virou minha cabeça: Emerson, Lake & Palmer. Fui fazer um som com a banda Vímana quando eu tinha uns 16 anos e o Lulú Santos me apresentou o disco Tarkus. Fiquei mudo! A partir daquele momento decidi o que ia fazer durante toda minha vida.
2112. Na sua família tem mais músicos?
Luciano. Não. Mas meus pais escutavam clássico diariamente. Foram eles que me colocaram para estudar piano. Eu ainda não havia nem aprendido multiplicação e divisão na escola. Logo, para que eu entendesse os valores das figuras rítmicas, minha mãe assistia as aulas de teoria junto comigo e me explicava tudo novamente ao chegar em casa, usando feijões e palitos. A dedicação dela foi o que me ajudou a entrar no Curso de Teoria Musical da UFRJ (Escola Nacional de Música) aos onze ou doze anos. Ao terminar o curso de três anos, eu queria emendar no curso de Licenciatura, mas a escola não deixou porque eu era muito novo. Então, criei a minha primeira apostila de teoria e meu primeiro método de piano e passei a dar aulas particulares para amigos e colegas da escola. Por incrível que pareça, estas apostilas que fiz na adolescência acabaram servindo como base para os meus nove livros de música que estão no mercado atualmente, através da Editora Irmãos Vitale.   
2112. Apesar dos estudos de piano clássico logo você aderiu ao uso dos sintetizadores o que o levou a estudar e a se graduar em eletro-acústica e computação. O uso do instrumento mudou a sua visão como músico? Essa sua decisão tem alguma conexão com o movimento progressivo?
Luciano. Enquanto eu estudava clássico, ao mesmo tempo ouvia Emerson, Lake & Palmer, Yes, Genesis, Herbie Hancock e Chick Corea. Todos usavam, no mínimo, um sintetizador Mini Moog. Foi nesta época que aderi aos sintetizadores. E, realmente, o Mini Moog foi o instrumento que promoveu uma grande guinada na minha carreira. Passei a usar instrumentos eletrônicos (sintetizadores, órgão, piano elétrico etc.) nas bandas em que eu tocava na época. Logo, em vez de fazer o curso científico, optei em fazer o curso técnico de eletrônica que também envolvia as matérias de computação. Não somente aprendi a montar rádio e televisão como, também, reparar meus teclados quando davam problema. Juntando o conhecimento de música clássica com o uso de instrumentos eletrônicos, automaticamente ingressei no universo da música progressiva. 
2112. Nesse período você chegou a participar de alguma banda e como surgiu o convite para você ocupar a vaga do Arnaldo nos Mutantes?
Luciano. Aos dezessete anos eu estava tocando com a banda Flor de Lotus que fazia um rock progressivo light. Chegamos a fazer vários shows no Rio e em São Paulo. Ensaiávamos perto da casa onde ensaiava o Veludo Elétrico que tinha na guitarra, o Paul de Castro. Quem entrou nos Mutantes logo após o Arnaldo, foi o Túlio Mourão. E eu entrei no lugar do Túlio. Quando ele e o Antônio Pedro (baixista) saíram dos Mutantes, entrou o Paul de Castro, que era guitarrista do Veludo Elétrico, para tocar baixo nos Mutantes. Eu e Paul costumávamos tocar juntos em jam sessions de rock no Rio. Assim, o Paul me indicou para os Mutantes. E, foi amor à primeira vista! Eu, Rui Motta, Sergio Dias e Paul de Castro fizemos dois ensaios e nos demos muito bem! Os Mutantes já tinham o órgão Hammond e um Mini Moog. E eu entrei com meu piano acústico de armário, um piano elétrico Fender Rhodes, um sintetizador Mini Korg e um Strings Honner. 
2112. Você sofreu algum tipo de hostilização por parte dos fãs do Arnaldo como aconteceu com Patrick Moraz no Yes?
Luciano. Não lembro de ninguém na plateia ter gritado pelo Arnaldo. Fui muito bem recebido tanto pela banda quanto pelos fãs e a imprensa. Inclusive, durante anos fui eleito o melhor tecladista de rock pelas revistas especializadas. Veja bem, eu tinha 19 anos quando comecei a fazer os primeiros shows com a banda. No mínimo, as pessoas me respeitavam pela audácia e coragem!  
2112. Pedro Só no texto do encarte do cd o enaltece como uma grande aquisição para a banda: "Para os teclados foi selecionado outro mineiro de técnica apuradíssima, Luciano Alves." Como o Sérgio tomou conhecimento do seu trabalho? Vocês já se conheciam antes?
Luciano. A técnica vinha do estudo do piano clássico. Isto, para mim, sempre foi um ponto de apoio. Ainda atualmente estudo, no mínimo, três hora de piano por dia. Eu não conhecia o Sergio pessoalmente, mas conhecia todo o repertório dos Mutantes. Já havia visto shows de todas as formações da banda. Sabia cada nota que iam tocar. Foi justamente o Paul de Castro (baixista) que falou de mim para o Sergio. E, a afinidade desta formação ficou muito clara logo que começamos a ensaiar, a compor e a nos apresentarmos juntos. Nos primeiros anos, ninguém precisava falar para o outro: toca assim ou assado. A música simplesmente fluía em altas esferas.  
2112. As performances dos Mutantes ainda hoje são lembradas por fãs e admiradores do rock progressivo como mágicas. Qual era a reação das pessoas?
Luciano. Os shows tinham um astral especial. Uma aura iluminada. Éramos irmãos. Quando entrávamos no palco, era o maior frenesi. Aos poucos o público ia se acalmando e entrando na viagem da banda. Dávamos para a plateia músicas para dançar, para pular e, principalmente, para viajar. Realmente, era um clima de comunhão total. Todos iam para casa satisfeitos e saciados. 
2112. Mas vocês tinham uma grande aparelhagem de som, jogos de iluminação, instrumentos de ponta que de uma certa maneira ajudava no resultado final, não é?
Luciano. Com certeza! Todos da banda eram muito exigentes com as questões da infraestrutura dos shows. O que adiantaria levar um piano acústico para os shows se o público não pudesse ouvi-lo perfeitamente? Para quê cinco teclados de altíssima qualidade, se o mixer não tivesse a capacidade de reproduzi-los com perfeição? O que adiantaria fazer um tremendo solo se o músico não estivesse bem iluminado? Uma das coisas que mais me surpreendia no Sergio Dias era o seu nível de exigência em relação ao equipamento. Na realidade, aprendi muito sobre infraestrutura de show com ele. Juntos, fomos a Londres escolher os amplificadores e os alto-falantes para o PA após termos nos reunido com o projetista da JBL em Milão. O Sergio não conhecia teoria musical nem havia estudado música academicamente, mas percebia facilmente quando um hum de 60 ciclos aparecia para perturbar. Além disso, sempre foi um dos maiores guitarristas do país.      
2112. Os Mutantes vivenciou todo aquele período crítico da repressão quando as bandas eram obrigadas a mudar o conteúdo das letras, tinham shows cancelados, ensaios invadidos pela polícia/exército, equipamentos quebrados ou apreendidos... Enfim, como vocês faziam para contornar todas essas situações?
Luciano. Neste ponto, realmente era um período muito ruim, muito anti-musical. Rita Lee dançou. Gilberto Gil dançou. Os pais ficavam com medo de deixar os filhos irem aos shows pois sempre havia batida policial no final. Cheguei a ter o piano acústico totalmente revistado após um show em SP. Constantemente éramos ameaçados de receber visitas indesejadas no sítio onde ensaiávamos. Não havia o que fazer. Eles é que mandavam. Vivíamos inseguros e paranoicos. Por isso fomos para a Itália. E, o pior é que, mesmo lá, fomos “visitados” em casa para um interrogatório informal dias após tocarmos no Parco Sempione, em Milão. 
2112. Ao Vivo é um dos raros álbuns gravado ao vivo na história do rock usando apenas material inédito. Como foi que surgiu essa ideia? 
Luciano. Tínhamos contrato com a Som Livre para fazer um LP que seria, a princípio, duplo. Todos da banda compunham. Logo, tínhamos bastante material para registrar. Tínhamos a consciência de que a banda crescia muito ao vivo. Os ensaios eram legais, mas era nos shows que explodíamos, junto com a plateia. Então, a ideia era registrar o que fazíamos de melhor, contando com a energia e a participação do público.
2112. Você poderia contar como foi o processo de pré-produção e gravação do álbum?
Luciano. Não houve muita pré-produção pois já vínhamos tocando o mesmo repertório nos shows pelo Brasil. A gravação foi realizada diretamente para um gravador Revox de dois canais. Dá para acreditar? Foram dezenas de fontes sonoras indo para um mixer de 32 canais (se não me engano) e, a saída estéreo do mixer indo para a entrada estéreo do gravador. Muito simples! Para falar a verdade, nem ficamos preocupados com o fato de estarmos gravando. Apenas tocamos o set list normal que estávamos acostumados. Quem teve que se virar para mixar tudo foi o engenheiro de som e produtor do disco Peninha (Pena Schmitd).
2112. Álbuns com gravação 100% ao vivo somente em bootlegs. O Ao Vivo teve muito overdubs em estúdio?
Luciano. O “Ao Vivo” foi no mesmo conceito de bootleg. A única diferença é que o equipamento de gravação, embora só com dois canais, tinha muita qualidade em termos de captação de todo o espectro sonoro e das dinâmicas. Não teve overdubs pois todo o material musical foi gravado em fita de 3 1/4’. Valeu o que tocamos ao vivo. 
2112. Soube que vocês ficaram insatisfeitos com a produção de Pena Schmitd que cortou vários solos e trechos das músicas para deixar tudo mais curto e comercial. Até onde isso é verdadeiro?
Luciano. Por um lado, o Peninha fez milagre como engenheiro de mixagem do show e do disco. Por outro, como produtor, houve o famoso corte de trechos das músicas... O Peninha foi crucificado, e ainda é, por isso. Acontece que o disco que ia ser duplo passou para único. Este é um ponto meio obscuro: não sei se a ordem veio do produtor geral do disco ou de alguém mais de cima. Mas sei que não foi o Peninha que decidiu sozinho que o disco seria único e com cortes. Fomos para o estúdio ouvir o resultado da gravação e, é claro, não entendemos nada quando ouvimos as músicas cheias de cortes. Cheguei a sugerir que seria melhor tiramos algumas músicas do disco (para fazer um só) do que incluir todas com aqueles cortes. Mas, como eu era o garoto da banda (com uns 20 anos), acho que minha opinião não valeu muito e a maioria resolveu deixar como estava mesmo. No final, mesmo insatisfeitos, tivemos que aceitar.      
2112. Você lembra quais músicas sofreram mais com esses cortes?
Luciano. Não lembro exatamente quais músicas, mas quase todas sofreram cortes principalmente nas introduções e nos solos.
2112. Houve alguma tentativa de acordo entre vocês e gravadora para tentar reverter toda essa situação?
Luciano. Pelo que lembro foi tudo decidido lá em cima. De qualquer forma, não havia o que fazer pois a Som Livre não queria mais lançar um duplo e a maioria não queria tirar músicas do disco. Por outro lado, poderíamos rearranjar as músicas e gravar tudo no tempo de um LP só, mas a Som Livre não bancaria outra gravação ao vivo. Situação sem solução...
2112. O progressivo de uma certa maneira sofreu um golpe violento com o surgimento do movimento punk que trouxe de volta músicas mais curtas e toscas que as sutilezas instrumentais do prog. Não seria esse um dos motivos dos cortes nas músicas?
Luciano. O movimento punk acabou com a música. A partir daí, qualquer coisa valia. Mas não foi o que influenciou a decisão a favor dos cortes. O motivo real é que, mesmo com os cortes, o “Ao Vivo” ainda soava rock progressivo do bom. 
2112. Bandas como o Yes, ELP, Genesis, Rush, Pink Floyd etc. que eram pontas de lança do movimento tiveram que se readaptar aos novos tempos. Deve ter sido um período muito difícil para vocês músicos, não?
Luciano. Pior do que a invasão punk foi a da discoteca. De repente nos vimos em uma situação muito estranha onde teríamos que retroceder como músicos para sermos ouvidos. Ainda bem que tinha e ainda tem um público que não abre mão do rock de qualidade. Até na Itália, passamos por uma situação bizarra: fomos chamados para gravar um disco em um estúdio que estava inaugurando em Milão. Começamos a gravar nossas últimas composições e o resultado estava bem legal. De repente, quando o repertório já estava bem andado, o produtor pediu para regravarmos algumas das nossas músicas com ritmo de discoteca. Quase matamos o cara! 
2112. Você tem conhecimento dos bootlegs Ao Vivo em Londrina (1975) e Ao Vivo em Ribeirão Preto (1978)? O som não é lá essas coisas mas é audível além de serem verdadeiras raridades para nós fãs da banda.
Luciano. Tenho o de Ribeirão que foi o nosso último show. Como você bem disse, o som é ruim, mas a emoção da banda está toda lá. Embora não estivéssemos nos dando tão bem – talvez já não fossemos tão irmãos, palco é palco, Mutantes é Mutantes!
2112. A Som Livre quando mencionou relançamento do álbum pensei que ela fosse disponibilizar o show completo. Mas ao invés disso apenas incluiu uma versão chinfrim de Cidadão da Terra como bônus. Será que parte desse material se perdeu ou no seu ponto de vista não houve mesmo interesse da gravadora em retrabalhar o material?
Luciano. Muitas vezes me perguntei se a Som Livre fez uma cópia de todo o material da gravação do “Ao Vivo”. A partir de um backup, poderíamos relançar o “Ao Vivo” na íntegra, sem cortes. Se tiverem editado a partir da fita original, sem um backup, já era! Mas, muitos anos já se foram... Não sei se algum produtor tomaria a iniciativa deste projeto.
2112. Quando você resolveu ficar na Itália Os Mutantes já havia acabado ou você resolveu sair antes? O clima na banda era muito tenso? O que o Sérgio alegou quando anunciou o fim da banda?
Luciano. Saí dos Mutantes na Itália pois estávamos discordando sobre shows e repertório. Eu, como músico, gostaria de estar me apresentando mais com a banda. O Paul de Castro também. Mas o Sergio e o Rui preferiam só tocar se os shows tivessem a mega-estrutura que estávamos acostumados. Por outro lado, após tantos meses lá, mudei muito minha cabeça, a forma de compor, a forma de ser. Eu não queria ficar tão preso ao rock apenas. Até passei a apresentar uns programas de música brasileira em uma rádio de Milão. Eu tocava discos de Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Quinteto Armorial, Milton Nascimento, Banda de Pífanos de Caruaru, Gilberto Gil, Rita Lee, Villa-Lobos. Ou seja, meu horizonte se expandiu muito ao conhecer a história do Brasil, fora do Brasil. De repente ficou muito clara toda a questão do golpe de 1964. Eles voltaram para o Brasil, mas eu fiquei ainda alguns meses em Milão, pois eu já havia me “demitido” da banda. Quando voltei para o Brasil, o Paul de Castro também havia acabado de sair e o Sergio perguntou se eu toparia fazer mais uns shows. Então fizemos mais uma leva em SP e depois paramos. Nesta formação entraram o Fernando Gamma no baixo e a cantora Bettina Graziani nos vocais. O clima da banda não era tenso. Não havia razões para brigas. Apenas a afinidade não era mais a mesma. Eu precisava expandir minha carreira e tocar mais minhas composições. E, estas não seriam com os Mutantes pois os gêneros musicais tornaram-se incompatíveis. Nesta época eu estava mais para o jazz-fusion e instrumental brasileiro. Em uma reunião, o Sergio disse que deveríamos parar pois já não estávamos com a mesma vontade de tocar juntos... E, a sugestão foi acatada por todos imediatamente. De certa forma, todos se sentiram aliviados.
2112. Durante esse período de vivência na Itália você trabalhou como músico, produtor e arranjador?
Luciano. Trabalhei sim, em discos de artistas italianos que queriam o algo mais da música brasileira. Na época, fiz gravações distribuindo os instrumentos do arranjo para diversos sintetizadores e teclados eletrônicos, gravando em máquinas analógicas de 24 canais. 
2112. O que mais te impulsionou a voltar para o Brasil?
Luciano. O frio. Chegando em novembro, a temperatura despencou e a neve começou a cair. Também, senti que havia completado uma jornada incrível de aprendizado e estava satisfeito com todas as experiências que havia vivido aos, apenas, 21 anos de idade. Éramos nove pessoas morando em uma casa de dois andares. Muitas festas, gente do mundo inteiro passando por lá, muitos artistas e músicos, muito som rolando... Alguns amigos italianos falavam que eu iria me arrepender de voltar para o Brasil. Mas, afinal, acho que eles estavam errados. Um tempo após chegar no Brasil, engrenei como tecladista e arranjador do Pepeu Gomes. Fiquei uns 12 anos com Pepeu e Baby. Gravei quase todos os discos deles. Eu me identificava muito com aquela mistura de música brasileira com rock. E, novamente, dei sorte de tocar com outro grande guitarrista! 
2112. Em 1989 você lançou Quartzo seu primeiro solo e também o primeiro disco no Brasil a fazer uso de softwares em estúdio. Como foi essa experiência?
Luciano. A partir de 1984, com o advento de MIDI, passei a usar softwares de sequenciamento musical. No Brasil isto era novidade. Aos poucos fui compondo e arranjando as músicas do meu primeiro álbum solo diretamente para um software de sequenciamento rodando no primeiro computador pessoal lançado: o Apple II. Mas nesta época eu estava tocando, gravando e viajando muito com diversos artistas da MPB. Só consegui parar para gravar o meu trabalho em 1989. As bases foram todas programadas para serem tocadas via software. Mas para que o disco não ficasse muito mecânico, chamei diversos músicos amigos para participar das faixas, durante a gravação. Muitos instrumentos acabaram sendo gravados em tempo real, analogicamente. Desta forma, consegui um bom equilíbrio entre máquina e humano. O resultado ficou um techno-pop-brazuca humanizado. E acho que isto contribuiu para que o repertório fosse muito utilizado em diversos programas de TV da Globo e de outras emissoras tais como: Globo Esporte, Vídeo Show, Faustão, Especiais da Manchete etc.
2112. No álbum você utiliza elementos rítmicos brasileiros misturado com o techno. Você ouve todo tipo de música?
Luciano. Realmente ouço os mais variados tipos de música desde a infância. Sempre procurei manter a mente aberta para absorver todos os tipos de influências contanto que fossem de boa qualidade. Comecei no piano clássico. Depois passei pelo rock, MPB, jazz, blues etc. Toco repertórios variados de todos estes gêneros musicais. Tenho coleções de partituras que posso usar para tocar, a qualquer momento, do clássico ao jazz. Prefiro não ficar preso a um determinado estilo. E, no final das contas, isto ajuda muito pois quando preciso compor trilhas sonoras, fico à vontade para enveredar por qualquer gênero.     
2112. Entre as músicas gravadas tem alguma que foi usada no período que você esteve nos Mutantes? 
Luciano. No Quartzo gravei um repertório bem diferente da época dos Mutantes. O repertório é bem anos 1980. Minha formação dos Mutantes terminou no final da década de 1970. Preferi trilhar um caminho bem diferente na carreira solo. 
     2112. Você sabe dizer se o Mautner ouviu ou mesmo tomou conhecimento da sua versão para o clássico dele Maracatu Atômico?
     Luciano. Realmente não lembro se ele chegou a ouvir ou se falei com ele sobre minha versão bem carregada de teclados. Eu costumava ir na casa dele para tocarmos e chegamos a esboçar algumas parcerias. Pode ser que eu tenha comentado, mas não tenho certeza. 

     2112. Baobá tem um estilo mais pop com influências do jazz e também de ritmos afro-brasileiros que hoje seria facilmente catalogado como world music. Como você trabalha suas influências?
    Luciano. Comecei a idealizar este CD logo após um show que fiz com o Pepeu no Festival de Montreux na Suíça. Na mesma noite, teve o show do Youssou N'Dour, cantor senegalês que se apresentou com muita percussão e banda completa que tinha um ótimo tecladista. O show dele me impressionou muito por causa da mistura da música pop com os ritmos africanos. Após o show fui conversar com o tecladista e ele me passou uma lista de CDs nos quais eu poderia pesquisar os ritmos africanos que eles exploravam. Quando cheguei no Brasil, a primeira coisa que fiz foi ligar a tecladaria e começar a compor. Para a gravação do CD, chamei diversos percussionistas incluindo o Chacal que virou percussionista do Paul Simon. O resultado é bem como você mencionou: uma mistura de jazz com pop e ritmos afro-brasileiros. E, esta era exatamente a minha meta neste trabalho. Este é um CD que vende muitas faixas pela Internet para os consumidores da world music.
     2112. Soube que além do bom desempenho do álbum você concorreu na categoria de melhor arranjador no VII Prêmio Sharp.
   Luciano. Exatamente. Acho que minha pesquisa e dedicação neste CD acabaram dando frutos pois fui para o Teatro Municipal de smoking para concorrer no Prêmio Sharp de Música como melhor arranjador. Não ganhei o primeiro lugar, mas foi uma ótima experiência.

2112. Em Mosaico você voltou a utilizar instrumentos acústicos como o piano Steinway. Foi uma volta às suas raízes?
     Luciano. Com certeza. Gravei este disco tocando somente piano de cauda. Nenhum teclado. Foi um grande desafio pois tive que voltar a praticar piano quatro horas por dia. Passei seis meses compondo músicas específicas para alguns estados do Brasil. Depois passei mais seis meses estudando essas músicas. Escrevi as partituras no computador nota por nota para facilitar na hora de gravar. De tanto estudar as músicas, acabei gravando tudo de cor. As músicas têm uma temática um tanto clássica, mas os ritmos são integralmente brasileiros. Mosaico é o meu retorno ao piano acústico sendo que na gravação do CD chamei vários músicos para fazer as melodias e os improvisos junto comigo. Já que as músicas eram dedicadas aos estados brasileiros, chamei alguns percussionistas para fazer as levadas características de cada estado homenageado.
     2112. Olhando sua discografia vemos que você não é o tipo de músico que se apega a uma determinada vertente musical e a explora a exaustão. Brasil Today é a prova do que estou falando quando você explorou a musicalidade de dez estados brasileiros para criar uma verdadeira tapeçaria sonora. Como surgiu essa idéia?
   Luciano. Tanto no Mosaico quanto no Brazil Today, a temática é bem brasileira. Mas deixe-me explicar a diferença entre estes dois projetos. Para começar, estes dois CDs foram feitos logo um após o outro. O Mosaico é um CD artístico/autoral, que saiu pela Gravadora Velas, onde mostro 10 composições minhas para 10 estados brasileiros. Compus tudo no piano e o trabalho é totalmente acústico. Já o Brazil Today possui 12 composições minhas também com temática brasileira, mas foi gravado com muitos sintetizadores misturados com bastante percussão acústica. Este é um CD comercial de trilhas que foi encomendado pela Gravadora alemã Sonoton Records a qual lança CDs para serem utilizados na sonorização de mídias visuais (filmes, programas de TV etc.). As faixas são usadas em programas de TV do mundo inteiro, do Brasil ao Japão. Se eu tivesse ficado preso só ao clássico ou só ao rock, não teria tido a oportunidade de produzir projetos como o Mosaico e o Brazil Today.

    2112. A nossa música (inclusive o rock) poderia ser bem mais rica e influente se as bandas explorassem mais o nosso folclore e sua musicalidade. Apenas Raul Seixas, Quinteto Violado, Novos Baianos, Chico Science, Mutantes, você etc. ousaram trilhar esse caminho. Qual a sua visão da cena hoje e quais bandas você destacaria com um trabalho interessante?
     Luciano.Realmente nosso país é muito rico musicalmente, mas parece que nossos novos artistas não estão muito ligados em difundir a nossa cultura. Na Tropicália, tivemos uma boa mistura da cultura brasileira com a música estrangeira e até a clássica (não podemos esquecer dos arranjos do maestro Rogério Duprat). Depois, a própria bossa-nova agregou a harmonia do jazz ao ritmo do samba, tocado de uma forma bem leve, intimista. Das bandas dos anos 1980, devemos também ressaltar ainda, os Paralamas que misturaram temáticas brasileiras com o ska, rock e reggae. Vi um show deles em Montreux onde o repertório foi bem diferente do que eles tocam aqui. Temos, ainda, Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti que sempre nos brindam com trabalhos essencialmente brasileiros, misturados com o jazz. Em relação às novas bandas, no momento, o cenário não é dos melhores. Tenho percebido que elas estão muito preocupadas em ser moderninhas e aí fazem aquela mistura pobre de funk com música eletrônica... Falta harmonia. Faltam solos. E para piorar, cantam muito em falsete pois agora é moda. Para salvar a situação, de vez em quando aparece uma nova banda de rock verdadeiro. Estas, pelo menos são mais fiéis e não apelam para modismos. Estas sim, poderiam misturar um pouco de levadas brasileiras, principalmente do Nordeste.      
     2112. Eu espero um dia ouvir um álbum com as músicas do Cartola vertidas para o blues. Vejo que o samba de raiz e o blues tem uma profunda afinidade. Seria um projeto interessante, não é?
     Luciano. É uma boa ideia. As Rosas não Falam daria um belo blues. Bastaria passar a subdivisão de quatro semicolcheias para três colcheias e teríamos uma bela levada de blues. A afinidade realmente existe pois, afinal, o blues e o samba (dança da umbigada ou samba) são manifestações originadas pelos escravos que vieram da África. A única diferença é que os escravos levados para os EUA eram de regiões diferentes dos trazidos para o Brasil. 

2112. Falando em releitura, em 2009 você lançou um álbum interpretando a obra do grande compositor Ernesto Nazareth. Como surgiu a ideia desse projeto?
   Luciano. Em 1999, após muitos anos envolvido somente em shows e gravações de rock, jazz e MPB, resolvi retomar meus estudos de piano clássico. Eu realmente estava com saudades de interpretar as peças de Chopin, Beethoven, Bach, Debussy, Rachmaninoff etc. Então, passei três anos estudando cinco horas por dia para retomar a técnica e reativar as mais de cem peças que eu tinha no repertório. Durante mais alguns anos, mergulhei nos 24 Estudos de Chopin e nos Prelúdios e Fugas de Bach até estar com tudo na ponta dos dedos. Um dia, organizando minha coleção de partituras, deparei com a pasta das obras de Nazareth. Como do Nazareth eu só tocava Odeon e Apanhei-te Cavaquinho, resolvi tirar mais algumas músicas dele. E, o que era admiração virou paixão! Tinha tudo a ver: era a união perfeita das melodias chopinianas com os ritmos de origem africana (que eu tanto havia pesquisado para compor para o CD Baobá e Mosaico) unidos à uma harmonização quase jazzística. Então, preparei um repertório de onze músicas de Nazareth e deixei tudo na ponta dos dedos para gravar o CD “Luciano Alves Interpreta Ernesto Nazareth” para a gravadora Biscoito Fino, usando um piano Yamaha. Depois, em 2014, gravei novamente todas as músicas em um piano Steinway, em Nova York, enquanto uma equipe filmava as gravações com três câmeras. E esta última, é a versão do CD que está no YouTube. Enquanto isso, o CD da Biscoito Fino, gravado no Brasil, continua vendendo normalmente.  
    2112. Sendo um álbum tributo o que te levou a incluir a inédita Pipocando no disco?
     Luciano. Compus o tango brasileiro “Pipocando” em homenagem a Ernesto Nazareth em 2001 para apresentá-lo no Festival Chorando No Rio, realizado na Sala Cecília Meireles no mesmo ano. A gravação ao vivo desta música inclusive está no CD do festival. Como eu era detentor único dos direitos autorais, resolvi inclui-la no meu CD dedicado a Nazareth. Já que ela foi composta em homenagem a Nazareth, com uma levada no estilo “Odeon”, ela cairia como uma luva para fechar o CD. No YouTube tem duas versões dessa música: uma gravada no Festival Chorando no Rio e outra no estúdio de NY.
     2112. Que outros compositores você gostaria de gravar?
    Luciano. Atualmente estou preparando diversos Prelúdios e Fugas de J. S. Bach do livro I e II. Acredito que vou gravá-los até meados de 2020. Mas gostaria de fazer um segundo CD interpretando Chopin. Depois, Tom Jobim, George Gershwin, uma seleção de standards de jazz... E, mais no futuro, gostaria de dar continuidade ao projeto do CD Mosaico compondo para os estados que não foram incluídos no primeiro CD.
     2112. Em 2011 em conjunto com Bettina Graziani é lançado Só o que a gente gosta apenas com clássicos do jazz e da bossa nova. Como vocês escolheram as músicas?
   Luciano. Quando comecei a conversar com a Bettina sobre a ideia de fazermos um duo de voz e piano, para interpretar os standards de jazz, blues e MPB dos quais mais gostássemos, uma coisa ficou clara: teríamos que ralar muito para escolher o repertório. E, realmente não foi fácil. Começamos ouvindo minha coleção de 3000 músicas chegamos a uma lista de 100 que gostaríamos de tocar ao vivo e gravar. Depois enxugamos para 40. Essas 40 músicas passaram a formar nosso repertório dos shows. Depois escolhemos as 12 mais relevantes e as incluímos no CD “Só o que a gente gosta” que foi lançado pela gravadora Fina Flor. Mas ainda temos material gravado e mixado para mais dois CDs que não sei exatamente quando vamos lançar. Esta é uma produção relativamente simples pois é só de piano e voz. Gravamos tudo no estúdio da minha escola de música CTMLA, no Rio de Janeiro. Eu ataco de pianista, arranjador, improvisador, produtor fonográfico, engenheiro de gravação, auxiliar de estúdio etc. e a Bettina interpreta com primor, as canções escolhidas. 
    2112. Uma coisa que me chama muito a atenção é que você sempre se cercou de grandes músicos para gravar seus álbuns: Pepeu Gomes, Fernando Gama, Paulo Moura, Oswaldinho... e mesmo Ruy Motta e Sérgio Dias seus ex-companheiros nos Mutantes. Gravar com amigos dá mais segurança?
     Luciano. Não é questão de segurança. Ocorre que quando chamo músicos para gravar, escolho os que tenho certeza que vão dar conta do recado pois minhas composições não são muito fáceis. Além disso, na hora do improviso, o cara tem que mandar bem!
     2112. Sinto que ... plays Chopin tem uma atmosfera toda especial. Além de ter sido todo gravado em Nova York você utilizou um piano Steinway D Centennial Edition Concert Grand de 1881.
    Luciano. Este é um CD iluminado. Tudo deu certo. A escolha das peças foi bem meticulosa. O clima da gravação foi ótimo lá no estúdio Louis Brown Records. O piano dele é um sonho de instrumento: teclas pesadas, teclado muito bem equilibrado e a captação com seis microfones não deixa nenhuma nuance de fora. Acabei gravando tudo em três horas apenas pois eu já estava com o repertório na ponta dos dedos. Assim, o resultado ficou como se fosse um recital. Depois, de volta ao Brasil, equalizei os microfones, editei os vídeos de cada música e subi para o meu canal pessoal do YouTube. Este CD, assim como os demais, é vendido pela CD Baby e as faixas estão no Spotify. 
     2112. Você mencionou certa vez que frequentemente recorre aos Estudos, Noturnos, Polonaises e Baladas do compositor para manter a técnica e para reviver os sentimentos mais profundos que somente as peças de Chopin proporcionava.
     Luciano. Chopin é o compositor que mais me emociona. Sua obra engloba todos os parâmetros (tools) da técnica pianística e exige muito aprofundamento na interpretação. Em especial, as Baladas 1 e 4 são muito densas e proporcionam uma técnica bem apurada após anos estudando-as. A forma que temos para manter a técnica é o estudo do repertório e dos exercícios do clássico. Não há como um pianista evoluir tecnicamente tocando só rock ou só jazz. É necessário ralar nos Estudos de Chopin, de Moszkowski, estudos mecânicos variados etc.
   2112. Neste cd você explora intensamente as nuances de dinâmica, o legato, o pedal de sustain o que muito valoriza a riqueza das melodias do compositor rock romântico.
     Luciano. Chopin foi um grande melodista. Mas, ao mesmo tempo, os seus arranjos são muito carregados de acordes, contra-pontos, saltos de baixos, arpejos na mão esquerda etc. Para tocar Chopin corretamente o pianista deve destacar sempre a melodia. Por mais que estejam ocorrendo arranjos densos de acompanhamento, a melodia é o item principal. O próprio Chopin anotou Cantabile em várias partituras. Por isso o pianista deve estar sempre preocupado com o equilíbrio de volume entre as mãos (melodia e acompanhamento). Realmente Chopin demanda muito aprofundamento na interpretação das dinâmicas e das intensidades. O pedal de sustain é extremamente importante e, muitas vezes, usamos a técnica de mezzo-pedale. Com uma boa técnica, conseguimos fazer com que a música soe simples, mesmo que ela seja muito difícil de executar. 
    2112. Uma mera curiosidade... você já pensou em gravar um álbum com características sinfônicas voltadas para o prog?
   Luciano. Já sim, mas nunca comecei a colocar no papel, ou seja, no software. Com os recursos de gravação via áudio e sequenciamento MIDI que possuo atualmente no estúdio, acho que faria 50 minutos de música progressiva sinfônica em um ano de trabalho já incluindo as composições, arranjos e orquestrações. Mas, cadê o tempo para isso? Estou muito dedicado à escola de música e gravações com o piano acústico. Além disso, tenho produzido cursos de piano online que demandam muito tempo para finalizar. Atualmente estou com quatro cursos online na plataforma de ensino à distância Udemy. Já lancei três cursos em português e um em inglês. Atualmente, tenho mais de 10000 alunos online em mais de 70 países.
     2112. Qual o telefone/e-mail para contratar você para shows?
Luciano. O telefone é o da minha escola de música CTMLA: (21)2226-1033. O e-mail comercial é: contato@lucianoalves.com.br 

2112. Muitíssimo obrigado pela entrevista, pela paciência em responder e ... o microfone é todo seu!

L  Luciano. Eu é que agradeço a oportunidade. Você me fez reviver minha carreira desde os idos dos anos 1970. Esta foi uma ótima fase da minha vida e, a partir desta entrevista pude sentir o gostinho daquela época. Foi um ótimo flash back. Desejo muito sucesso para o seu blog e deixo aqui um forte abraço para todos os seus seguidores. Vida longa para o 2112!